(da série Registros sobre Registros, n. 298)
Des. Ricardo Dip
1.017. Assim que sejam notificados do pedido registral de usucapião, todos os titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confrontantes têm o prazo de 15 dias para
(i) manifestar seu consentimento expresso,
(ii) impugnar a pretensão (cf. § 10 do art. 216-A da Lei 6.015/1973) ou
(iii) manter-se inerte, vale dizer, omitir manifestação alguma perante o registrador.
Nesta última hipótese –a de inércia, passividade ou inatividade dos notificados–, prevê a atual normativa de regência que o silêncio se compreenda e interprete como concordância. A redação do vigente § 2º do art. 216-A da Lei 6.015 deriva da Lei 13.465, de 11 de julho de 2017 (art. 7º), porque, antes dela, previa-se exatamente o oposto, equivale dizer, que o silêncio dos notificados se compreendesse e interpretasse como discordância.
Está-se agora, com a extração de uma eficácia positiva a contar do silêncio dos notificados, diante de uma revitalização de um velho adágio medieval qui tacet consentire videtur (quem cala, parece consentir), aforismo adotado pelo direito canônico (com o Liber sextus decretalium do Papa Bonfiácio VIII). Talvez a parêmia possa mais apropriadamente exprimir-se com esta fórmula: qui tacet, ubi loqui debuit ac potuit, consentire videtur. A oração intercalada ubi loqui debuit ac potuit expressa o dever (ou o ônus) e a capacidade de falar, a potencialidade de opor-se, enfim. Quer dizer, trata-se de reputar juridicamente relevante a circunstância de que, em determinada situação, tendo alguém a capacidade (de fato e jurídica) de falar e a obrigação ou ônus de fazê-lo, preferiu omitir-se, manter-se inerte em seu pronunciamento por palavras ou gestos.
Renzo Tosi (Dicionário de sentenças latinas e gregas), com sua apreciada erudição, registrou que algo símile ao qui tacere consentire videtur já se encontrava na literatura de Eurípides, Sófocles e, entre os romanos, Sêneca: silentium videtur confessio. Aparecerá ainda essa indicação em outros muitos autores (entre eles, Cicero, Apuleio, Rufino), e no jurisconsulto Paulo: qui tacet non utique facetur, sed tamem verum (quem cala, realmente, não confessa, mas também é verdade que não nega).
Se, no processo extrajudicial de usucapião, é ou não prudente acolher o relevo jurídico do silêncio dos notificados e, a partir de sua inércia, inferir-lhes a vontade tácita, é questão efetivamente muito disputada, porque, já em um panorama amplo, a figura do silêncio nas relações jurídico-administrativas empolga conhecidas controvérsias, que podem resumir-se nestas palavras de Torquato Tasso: “… o silêncio, qualificado ou não, interpretado por meio de numerosas chaves de leitura, oferece-se ao intérprete sempre como uma realidade enigmática” (in Il silenzio della pubblica amministrazione, 2004, p. 115). Inúmeros casos de anomalias contratuais, por exemplo, fazem manifestos os vícios da vontade expressa, e quantos mais não seria de esperar dos casos de mera suposição legal de consentimento (vontade implícita).
Muito significante do espartilho prudencial que, a propósito, limita o papel jurídico do silêncio na formação, modificação ou extinção da vontade nas relações administrativas parece também estar no fato de que, em linha de princípio, só se admita a vontade tácita da administração pública quando a lei a preveja, e ela só a prevê em caráter muito excepcional.
Não se pode perder de vista que, no plano da utilidade do processo extrajudicial, a nova orientação –que infere uma eficácia convergente a partir do silêncio dos notificados– beneficia tendencialmente as pretensões aquisitivas (vale dizer, a dinâmica ou fluidez registral). Mas a contrapartida é, para logo, o menor favorecimento conferido à estática do domínio, que é o critério principal na adoção dos mecanismos registrais. Além disto, a possibilidade de a notificação cumprir-se mediante edital (o que se admitiu com a Lei 13.465), sem prever-se a efetividade defensiva por meio de curador especial, põe em evidência os riscos da direção adotada com o novo § 2º do art. 216-A da Lei 6.015.
No plano prático-prático, ocorrerá, decerto, muita vez, que a má compreensão dos termos da notificação ou dos elementos documentários que a acompanhem (p.ex., o relativo ao desenho do imóvel usucapiendo) poderá acarretar vício de consentimento na própria inércia dos notificados.
Não é menos de recear que, neste quadro de eventuais máculas da vontade tácita, haja o risco de retroceder a pretensão indenitária de eventuais danos, por injusto que isto possa logo parecer, à atuação dos notários e, sobretudo, dos registradores, uns e outros que não têm em seu favor a amplitude de resguardo que, no plano similar do processo judicial, apetrecha os juízes (cf. art. 143 do Código de processo civil: O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte“).
Dir-se-á, é verdade, que o silêncio produz efeitos de revelia no processo jurisdicional, e, pois, a fortiori, poderia produzi-los no processo administrativo. Isto se discutirá na sequência.
1.018. Como ficou visto, diz a lei que o silêncio dos notificados –tanto que cientes de modo formal e regular do pleito extrajudicial de usucapião– deve ser interpretado como concordância.
Concordar é pôr-se de acordo, ajustar, pactuar, conciliar, harmonizar; sua origem é o verbo latino concordo (inf. concordare) que, por sua vez, indica-se derivado do adjetivo concors, concordis –o que está de acordo, o que se une de modo cordial. E, ainda mais, o adjetivo concors resulta do substantivo cor, cordis (em acepção própria: coração; figuradamente: alma). Por sua própria etimologia, o termo concordância, pois, pressupõe o ânimo (cor) de pôr-se de acordo.
Este acordo, já se disse, pode ser expresso –tanto por meio de palavras, quanto de gestos (v.g., um balançar da cabeça, um aperto de mãos, a antiga entrega, traditio cartæ, que o tabelião fazia de um escrito ao destinatário)– e tácito, tal o preceitua a parte final do § 2º do art. 216-A da Lei 6.015, de 1973.
Em defesa desta norma do § 2º do art. 216-A há quem acene ao paralelo do processo jurisdicional, assim, atualmente, o que prevê o art. 344 do Código brasileiro de processo civil: “Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor”.
Afirma-se que, admitida a revelia no processo jurisdicional, estará legitimada, por maioria de razão, a revelia –rectius: a concordância implícita ou vontade tácita– em um processo apenas administrativo, assim o extrajudicial de usucapião. E por que a fortiori? Porque admitida a revelia em processo atrativo da autoridade da res iudicata e sujeito a prazo exíguo de rescisória, deve admitir-se por mais razão, que haja revelia num processo que não se revestirá da autoridade da coisa julgada material e cuja revisão não se limita pelo tempo escasso da ação rescisória.
Estas ideias parecem plausíveis, mas, decerto, mais se mostrariam razoáveis se o quadro da revelia processual fosse exatamente o mesmo da concordância tácita do processo extrajudicial de usucapião, impondo a nomeação de curador especial aos notificados com hora certa ou por edital (cf. inc. II do art. 72 do Cód.pr.civ.), e concedendo aos registradores os mesmos supostos de responsabilidade civil que se preveem para a responsabilização dos juízes (art. 143 do Cód.).
De toda a sorte, há um espelhismo processual que, assim parece, deve acercar a atuação do juiz e do registrador nos quadros destas duas revelias. Com efeito, não está o juiz adstrito, de maneira absoluta, aos efeitos materiais da revelia, tal se lê no art. 345 do Código de processo civil, não se produzindo esses efeitos (a que se refere o art. 344), entre outras hipóteses, se “a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato” ou se “as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos” (incs. III e IV do art. 345).
Também o registrador poderá recusar a eficácia material da concordância tácita emergente do silêncio do notificado, seja à falta de instrumento que a normativa repute indispensável (p.ex., a ata notarial, se é que, antes, não a tenha exigido como condição do pedido), seja quando “as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos”.
Assinale-se, a propósito, não só o paralelismo da revelia do processo jurisdicional com a da revelia do processo extrajudicial da usucapião, a recomendar neste a adoção das regras dos incisos III e IV do art. 345 do Código de processo civil –cuja incidência, de resto, pode apoiá-la o registrador na previsão do art. 15 do mesmo Código–, mas também para evadir o uso da via extrajudicial para fraudar a verdade; a este propósito, lê-se no art. 142 do Código de processo civil: “Convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé” –e esta regra pode, ou melhor, deve aplicar-se pelo registrador.