(da série Registros sobre Registros, n. 263)
Des. Ricardo Dip
940. Do item 20 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, tem-se que são suscetíveis de registro stricto sensu os “contratos de promessa de compra e venda de terrenos loteados em conformidade com o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, e respectiva cessão e promessa de cessão, quando o loteamento se formalizar na vigência desta Lei”.
Esse dispositivo complementa a previsão do item 9º do mesmo inciso do art. 167 da Lei 6.015, que indica serem também registráveis em sentido estrito “os contratos de compromisso de compra e venda, de cessão deste e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóveis não loteados e cujo preço tenha sido pago no ato de sua celebração, ou deva sê-lo a prazo, de uma só vez ou em prestações”.
É dizer que se registram −em acepção estrita− os contratos de promessa de compra e venda, de sua cessão e de sua promessa de cessão tanto se refiram a imóveis não loteados (item 9º do inc. I do art. 167), quanto loteados (item 20), o que é sugestivo da muito provável conveniência de unificarem-se esses itens da lei, por mais não se devam ignorar as características peculiares da promessa de compra e venda objeto do Decreto-lei 58/1937.
O Decreto-lei 58/1937, versando o loteamento e a venda de terrenos para pagamento a prazo, admitiu que a titulação das promessas de compra e venda nele previstas se fizesse quer por meio de instrumento público, quer mediante contrato de origem privada (caput do art. 11), permitindo, exigíveis duas vias, fossem manuscritos, datilografados ou impressos (§ 1º do art. 11), com o concurso de duas testemunhas e, se por instrumento particular, com o reconhecimento notarial das firmas dos participantes (cf. o mesmo § 1º do art. 11). Satisfeitos os requisitos elencados nesse art. 11 do Decreto-lei 58 −a saber: (i) nome, nacionalidade, estado e domicílio dos contratantes; (ii) denominação e situação da propriedade, número e data da inscrição; (iii) descrição do lote ou dos lotes que forem objeto do compromisso, confrontações, áreas e outros característicos, bem como os números correspondentes na planta arquivada; (iv) prazo, preço e forma de pagamento, e importância do sinal; (v) juros devidos sobre o débito em aberto e sobre as prestações vencidas e não pagas; (vi) cláusula penal não superior a 10 % do débito, e só exigível no caso de intervenção judicial; (vii) declaração da existência ou inexistência de servidão ativa ou passiva e outros ônus reais ou quaisquer outras restrições ao direito de propriedade; e (viii) indicação do contratante a quem incumbe o pagamento das taxas e impostos−, previu-se a averbação do título no ofício imobiliário (alínea b do art. 4º; art. 5º;; § 1º do art. 11: ambas as vias do contrato “serão entregues dentro em 10 dias ao oficial do registo, para averbá-las e restituí-las devidamente anotadas a cada uma das partes”; cf. também o art. 5º do Decreto 3.079, de 15-9-1938, decreto esse que regulamentou o Decreto-lei 58/1937, e ainda, no mesmo sentido, o item 5º da alínea c do art. 178 do Decreto 4.857/1939 −nosso antigo Regulamento dos registros públicos).
Não escapou a Serpa Lopes a menor precisão em estabelecer-se o averbamento dessas promessas e de suas transferências, observando que esse modo especifico da averbação desempenhava, neste capítulo, o mesmo papel atribuído às inscrições, “pois −disse o autor− a sua função jurídica não se relaciona com um ato jurídico modificativo do direito principal, nem serve simplesmente para indicar uma alteração no estado de fato da coisa objeto do registo imobiliário, mas, mui ao contrário, atua com formalidade que atribui ao compromisso de compra e venda o caráter de direito real” (Tratados dos registos públicos, item 664).
Assim, efetivamente, previa o art. 5º do Decreto-lei 58: “A averbação atribui ao compromissário direito real oponível a terceiros, quanto à alienação ou oneração posterior, e far-se-á à vista do instrumento de compromisso de venda, em que o oficial lançará a nota indicativa do livro, página e data do assentamento”, e, com as mesmas palavras, o art. 5º do Decreto 3.079/1939.
Reiterou-se no Decreto-lei 58 a previsão de que se averbassem as promessas relativas também a imóveis não loteados (art. 22), dispositivo que foi sucessivamente alterado pelas Leis 649/1949 (11-3) e 6.014/1973 (de 27-12), esta última adaptando diversas leis ao Código de processo civil de 1973, dispondo-se naquela (art. 1º): “Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato da sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações desde que inscritos em qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória, nos termos dos artigos 16 desta lei e 346 do Código do Processo Civil" (o itálico não é do original); note-se que já não se mantinha, com a Lei 649, referência expressa à averbação indicada no originário art. 22 do Decreto-lei 58. Nessa mesma linha da Lei 649 vai a redação da Lei 6.014.
Com o advento da Lei 6.015, as promessas, como já ficou dito, passaram a ser registráveis, em sentido estrito, o que mais se mostra consonante com a ortodoxia registral (itens 9 e 20 do inc. I do art. 167), e deve entender-se que o disposto na Lei de registros públicos quanto às promessas de compra e venda de terrenos loteados e suas transferências abrangem as situações da Lei 6.766/1979 (de 19-12; cf., neste sentido, brevitatis causa, Luís Paulo Cotrim Guimarães, in Lei de registos públicos comentada, VV.AA., coord. José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler, 2014, p. 681). Mantendo a norma anterior de admissibilidade de titulação privada (art. 26), a Lei 6.766 prevê serem “irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros” (a ênfase gráfica não é do original), sem referir-se, pois, à modalidade da averbação; seu art. 36 menciona expressamente o “registro do compromisso” e no art. 31 há duas alusões ao registro da cessão (ver ainda § 2º do art. 32-A); mas é também e em contrapartida de observar que o § 3º do art. 32 da Lei 6.766 refere-se ao cancelamento da averbação do título aquisitivo.
De relevo para o registro imobiliário é a previsão na Lei 6.766 −e que já havia no Decreto-lei 58/1937 (art. 13)− de o contrato particular poder transferir-se “por simples trespasse, lançado no verso das vias em poder das partes, ou por instrumento em separado, declarando-se o número do registro do loteamento, o valor da cessão e a qualificação do cessionário, para o devido registro” (art. 31). Trespasse ou traspasse tem o sentido, nesse dispositivo, de “ceder a outrem”, “passar a outrem”, bem invocando Serpa Lopes a analogia com o endosso do direito cambial. Ainda que essa cessão independa da anuência do loteador (§ 1º do art. 31 da Lei 6.766), seus efeitos só se produzem quanto ao loteador, após sua cientificação, “por escrito”, seja diretamente pelas partes envolvidas no negócio, seja depois do registro da cessão, impondo-se ao oficial imobiliário dar-lhe ciência dento no prazo de dez dias (§ 2º do mesmo art. 31).
Saliente-se, por fim, o que dispõe o § 6º do art. 26 da Lei 6.766 −com a redação da Lei 9.785/1999 (de 29-1): “Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação”. Parece bastante provável a compreensão restritiva do significado normativo desse texto legal, assim o sustenta Marcelo Martins Berthe (Doutrinas essenciais -Direito registral, VV.AA., tomo IV, p. 1.222-3), ao circunscrever a possibilidade de o título do compromisso valer para a transferência de domínio apenas quando passado pelo próprio loteador e não por outros alienantes sucessivos, evitando o alargamento excepcional de contorno da norma do art. 108 do Código civil brasileiro de 2002: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.