(da série Registros sobre Registros, n. 342)
Des. Ricardo Dip
1.090. Dando sequência ao capítulo do registro da desapropriação imobiliária, tratemos de algumas distinções que, eventualmente, podem implicar algo de relevo para a atividade registral, embora de comum aí se trate de temas que estão mais afetos à atuação administrativa e judicial.
Comecemos por discriminar, de um lado, a mera declaração da utilidade pública de um imóvel, e, de outro lado, a expropriação desse mesmo imóvel. Essa declaração é objeto de vários dispositivos do Decreto 3.365/1941 −a Lei geral das desapropriações. Assim:
− art. 2º: "Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios";
- art. 6º: "A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito";
- art. 7º: "Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas do expropriante ou seus representantes autorizados a ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial";
- art. 8º: "O Poder Legislativo poderá tomar a iniciativa da desapropriação, cumprindo, neste caso, ao Executivo, praticar os atos necessários à sua efetivação".
Tem-se, portanto, que a declaração de utilidade pública pode provir de decreto (art. 6º do Dec.-lei 3.365) ou, o que é de fato mais raro, de lei (art. 8º), uma lei de efeito concreto (cf. José Carlos de Moraes Salles, A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência, ed. Revista dos tribunais, 5.ed., São Paulo, 2006, p. 141). Leis de efeito concreto são as, assim escreveu Hely Lopes Meirelles, "as deliberações individualizadas revestindo a forma anômala de lei (…)" (Direito administrativo brasileiro, ed. Malheiros, 34.ed., São Paulo, 2008, p. 721). Trata-se aí de uma lei em acepção formal, que, entretanto, é um ato administrativo em sentido material.
Controverso é que a declaração de utilidade pública de um imóvel, para fins de desapropriação, possa averbar-se no registro imobiliário. Não se prevê essa averbação na lista do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, e não parece cômodo admiti-la sob a égide de seu art. 246 ("Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel"), porque a só declaração de utilidade pública não modifica o registro, nem repercute nos direitos referentes ao imóvel objeto. De maneira mais recente, invocando o que se tem aludido ser um novo «princípio registral» −no fim e ao resto, um «princípio» sem caráter universal, é dizer, particularíssimo−, há quem trate de justificar o averbamento da declaração de utilidade pública por força da técnica de «concentração» de atos na matrícula do imóvel. Abstraindo-se o interesse emolumentar, o que mais parece sugerir que não se admita essa averbação está em que importa ela numa indisponibilidade factual do imóvel atingido, antecipando, na prática, algo, contra o legitimado tabular, dos efeitos apenas próprios da desapropriação.
Veja-se, a propósito, esta lição de Hely Lopes Meirelles: "(…) a declaração expropriatória não tem qualquer efeito sobre o direito de propriedade do expropriado, nem pode impedir a normal utilização do bem ou sua disponibilidade (…)" (o.c., p. 619).
Saliente-se que a Lei 6.015, no item 36 do inciso I de seu art. 167, prevê o registro stricto sensu "da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas", e, em reforço do entendimento de que não se admita, secundum legem, o averbamento da declaração de utilidade pública, vem de molde referir que a Lei 14.273, de 23 dezembro de 2021, incluindo o art. 176-A na Lei 6.015, reiterou, no inciso I de seu § 5º, o registro do "ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação", sem nenhuma indicação, em acréscimo, da possibilidade de averbar-se a declaração de utilidade pública.
De toda a sorte, dando-se o caso de, mal ou bem, bem ou mal, proceder-se ao averbamento da declaração de utilidade pública, poderá ocorrer que, decaindo-se do direito de expropriação, haja a necessidade de averbar-se a decadência ("A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará").
Outro ponto ainda a considerar, quanto a essa declaração, é o que corresponde à previsão do art. 5º do Decreto-lei 3.365, elencando as hipóteses de utilidade pública (16 hipóteses). Não cabe ao registrador de imóveis controlar a conformidade da declaração com o dispositivo desse art. 5º, primeiro porque este controle até mesmo não cabe na via judicial: "Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública" (art. 9º do Dec.-lei); depois, porque é controverso sejam taxativas as hipóteses de utilidade pública enunciadas no art. 5º da Lei geral da desapropriação, motivo adicional para que não se propicie ao registrador o dever de, na qualificação do título, revolver o tema.
Embora os dispositivos do Decreto-lei 3.365 se refiram apenas à utilidade pública na desapropriação −ao passo em que o item XXIV do art. 5º da Constituição brasileira indique outras hipóteses, como já ficou dito ("a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição")−, tenha-se em conta que, em palavras de Moraes Salles, "o conceito de necessidade é abrangível pelo de utilidade pública" (o.c., p. 171), e a declaração de "interesse social" vem abarcada, a partir da Lei 4.132 (de 10-9-1962), por vários outros diplomas legais (p.ex., a Lei 4.504, de 30-11-1964 −o Estatuto da Terra−, a Lei 8.629, de 25-2-1993, a Lei complementar 76, de 6-7-1993, a Lei 9.393, de 19-12-1996).
Prosseguiremos.