(da série Registros sobre Registros, n. 344)
Des. Ricardo Dip
1.093. Na sequência das considerações relativas ao capítulo do registro da desapropriação de bem imóvel, tratemos agora de matéria que tem referência nos arts. 10 e 10-A do Decreto-lei 3.365, de 1941.
Lê-se no aludido art. 10: "A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará".
Interessa-nos neste passo examinar a hipótese de a expropriação efetuar-se por meio de um acordo.
A Lei 13.867, de 26 de agosto de 2019, instituiu um procedimento administrativo dirigido à consecução desse acordo. Prescreveu essa lei que o poder expropriante notifique o proprietário do bem objeto de desapropriação e que lhe ofereça uma oferta indenizatória (caput do art. 10-A do Dec.-lei 3.365). Dessa notificação deverá constar cópia do ato declaração de utilidade pública, planta −ou descrição− do imóvel com suas confrontações, o valor oferecido para fins de indenização e a notícia de que o prazo para a aceitação ou rejeição da oferta indenizatória é de 15 dias, do silêncio extraindo-se recusa da oferta (cf. § 1º do art. 10-A). Uma vez que se aceite o valor oferecido pela expropriante, realizar-se-á o pagamento correspondente, lavrando-se o acordo, que −diz a lei− "será título hábil para a transcrição no registro de imóveis" (§ 2º do art. 10-A). Rejeitada que seja a oferta −incluído o caso de transcurso do prazo para aceitá-la−, ao expropriante enseja-se a via do processo judicial (arts. 11 et sqq.; cf. § 3º do art. 10-A).
Um primeiro ponto a considerar aqui está na referência legal a que o acordo entre e o expropriante e o proprietário do imóvel a desapropriar-se seja um título hábil para a transcrição no registro de imóveis (§ 2º do art. 10-A do Dec.-lei 3.365). Como ficou dito, esse dispositivo resultou da Lei 13.867, de 2019 −à altura, vigente a Lei 6.015 há mais de 40 anos. A despeito disso, o diploma legal de 2019 fala em «transcrição» no registro de imóveis, e, então, o que deve estimar-se é se esta referência não passa de um mero lapsus legislatoris ou se, ao revés, é uma determinação propositada.
Quando a Lei 6.015 foi editada, a redação primeira de seu art. 168 previa, no inciso II, diferentes hipóteses que atraíam a transcrição. Esse dispositivo, todavia, foi suprimido mediante a Lei 6.216, de 30 de junho de 1975, e, em seu lugar, adveio o art. 167 que, mais não se referindo à transcrição, dividiu os atos suscetíveis de inscrição na matrícula em registro em sentido estrito e averbação. Foi com esse art. 167 que entrou em vigor, no dia 1º de janeiro de 1976, a Lei 6.015, que trazia, então, em seu (novo) art. 168 a referência de que "na designação genérica de registro, consideram-se englobadas a inscrição e a transcrição a que se referem as leis civis".
Persiste na Lei 6.015 uma hipótese de transcrição. Encontra-se ela no inciso VII do art. 178, quanto aos atos suscetíveis de efetivar-se no livro 3 (registro auxiliar), ali se enunciando: "os títulos que, a requerimento do interessado, forem registrados no seu inteiro teor, sem prejuízo do ato, praticado no Livro nº 2". Trata-se, pois, de uma inscrição −de inteiro teor (especificamente, portanto, uma transcrição)− com caráter facultativo ("a requerimento do interessado" −expressão que não se justificaria num sistema de tendencial rogação para os registros, não fora exatamente para indicar a facultatividade dessa transcrição).
Acrescente-se que, com o texto da Lei 14.273/2021 (de 23-12), o art. 176-A da Lei 6.015 assim dispõe: "O registro de aquisição originária ou de desapropriação amigável ou judicial ocasionará a abertura de matrícula, se não houver, relativa ao imóvel adquirido ou quando atingir, total ou parcialmente, um ou mais imóveis objeto de registro anterior". Ou seja, não se prevê coisa diversa do que um «registro» da desapropriação amigável ou judicial.
Desta maneira, parece que o uso do vocábulo «transcrição» no § 2º do art. 10-A do Decreto-lei 3.365 −com a redação da lei de 2019− deva imputar-se a um lapso do legislador. Compreensão diversa, neste ponto, contrastaria com o sistema registral em vigor, sem que se aviste, de resto, motivo algum que justificasse uma eventual exceção.
O acordo a que se refere o art. 10 do Decreto-lei 3.365 –"a desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo"− não tem por objeto o direito de desapropriar, pois que aí se trata, como ficou visto, de uma sujeição. Observou-o muito bem José Carlos de Moraes Salles: "O acordo versará, pois, sobre o valor do bem desapropriando. Em torno desse preço é que se compõem as partes. Não se dispõe, no acordo, sobre a desapropriação propriamente dita". E prossegue o autor: "Por isso é que nos parece impróprio falar em desapropriação amigável, porque a expropriação é, sempre, a transferência forçada ou compulsória da propriedade particular para o Estado ou seus delegados" (in A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência, ed. Revista dos Tribunais, 5.ed., São Paulo, 2006, p. 244).
Interessante é apontar que esse acordo ou transação entre o expropriante e o proprietário do imóvel, acordo a que cabe o molde conceitual indicado no caput do art. 840 do Código civil brasileiro em vigor –"É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas"−, pode excepcionar, entretanto, o que dispõe seu art. 842: "A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz".
É que, nos termos enunciados pelo inciso III do § 5º do art. 176-A da Lei 6.015, de 1973, dispositivo incluído por meio da Lei 14.272, de 2021, o acordo, no procedimento extrajudicial de desapropriação, poderá instrumentar-se não apenas por escritura pública (é dizer, ato notarial), mas também por termo ou contrato administrativo.
Saliente-se que essa admissão de termo ou de contrato administrativo para o registro do acordo em matéria de desapropriação vai além da mais restrita regra prevista no inciso V do art. 221 da Lei 6.015, que apenas se refere a "contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social, dispensado o reconhecimento de firma" (redação da Lei 14.424, de 16-6-2011).
Assim, quanto ao acordo na desapropriação, o "título hábil para a transcrição no registro de imóveis" (§ 2º do art. 10-A do Dec.-lei 3.365) será tanto a escritura pública, quanto o termo ou contrato administrativo.