Registro de desapropriação (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 334)

Des. Ricardo Dip

1.080. Para tratar do tema do registro imobiliário da desapropriação, entendemos que convinha examinar, ainda que em linhas gerais, o estatuto da dominialidade −ou, em outros termos, o estatuto da propriedade pública. E isto, sobretudo, quanto aos modos de aquisição do domínio pelas entidades públicas. A tanto, iniciamos, na explanação anterior, uma breve excursão pelos tempos medievais da Península Hispânica, sobretudo considerando a situação do território português. Apontamos, então, o instituto da presúria −ou seja, a recuperação das terras que haviam sido tomadas pelos muçulmanos a partir de 711−, e observamos que, retomadas pelos cristãos, essas terras, quando não são apresadas por particulares em nome próprio, passavam logo ao domínio dos Reinos correspondentes (o que, na parte norte da Península Ibérica, significava dizer que passavam à propriedade fosse das Astúrias −depois, Leão−, fosse do Reino da Galícia −ainda que avassalado a Leão− ou fosse, ainda, dos três sucessivos Condados Portucalenses, que adiante se tornou o Reino de Portugal; averbe-se que é discutível a data da existência desse Reino de Portugal, ou seja, da soberania portuguesa: uns a situam em 1128, tempo da Batalha de São Mamede, em que Dom Afonso Henriques derrotou as tropas de sua mãe, Dona Teresa de Leão, e forças galegas dos Peres de Trava; outros preferem remetê-la a 1139, data da Batalha de Ourique, em que se saiu vitorioso Dom Afonso Henriques contra os muçulmanos, passando ele a assinar-se Rex Portugallensis; há quem entenda remeter-se ao Tratado de Zamora, em 1143, quando o Rei de Leão e Castela, Dom Afonso VII, teria reconhecido a soberania portuguesa; ou ainda em 1179, quando o Papa Alexandre III, por meio da bula Manifestis probatum, declarou existente essa soberania; por fim, há mesmo quem sugira que antes de 1128 já se afirmava, de fato, a realidade soberana do Reino Portucalense).

O que aqui mais nos importa é o instituto da presúria −no modo de obtenção de domínio público− e não a qual condado ou reino tocava a propriedade das terras recuperadas. Já fizemos ver que os reis destinavam, com ampla e discricionária disponibilidade, as áreas pelos reinos recobradas dos muçulmanos, o que, pois, passa pelo manifesto reconhecimento de que a reconquista emanava um título dominial. Essa titulação aquisitiva acompanhou a história toda do Medievo português: Vímara Peres, por exemplo, no século IX, expandiu o primeiro Condado Portucalense; o Conde Henrique de Borgonha, por igual, tratou de ampliá-lo, em fins do século XI e início do XII; já ficou dito que Dona Teresa de Leão doou imóveis, em 1122 e 1128, para o estabelecimento de duas das quatro ordens militares que se instalaram no terceiro Condado Portucalense (as Ordens dos hospitalários e dos templários); apontamos, ainda, com fins ilustrativos, que, no século XIV, ao Condestável Nun'Álvares Pereira se atribuíram pelo Rei Dom João I tantas terras −p.ex., os três condados que havia em Portugal: de Arraiolos, de Barcelos e de Ourém−, que se tornou Dom Nuno o homem mais rico do Reino (para se ter alguma ideia disto, era ele dono, praticamente, de toda a região do Alentejo); já no século XV, por exemplo, na regência de Dom Pedro (morto o Rei Dom Duarte, deixando por seu sucessor Dom Afonso V, que era por então uma criança com seis anos de idade; assim, a regência do Reino de Portugal, depois de breve período em que a exerceu Dona Leonor de Aragão, passou às mãos de Dom Pedro, tio de Dom Afonso V), mais se dizia: com o Regente Dom Pedro estabeleceu-se o Ducado de Bragança −até a essa altura, havia dois ducados em Portugal: o de Coimbra, concedido por Dom João I a seu filho Dom Pedro, e o de Viseu, também conferido pelo mesmo Rei Dom João I a outro de seus filhos, o célebre Dom Henrique, um dos seis integrantes da ínclita geração a que se referiram estes versos de Luís de Camões: "pera defensão dos Lusitanos,/Deixou, quem o levou, quem governasse/ E aumentasse a terra mais que dantes:/ Ínclita geração, altos Infantes" (in Os Lusíadas, IV, 50); mais adiante, Dom Afonso V criou o Ducado de Beja, assinando-o a seu irmão, o Infante Dom Fernando; já o Ducado de Bragança foi então concedido a um meio-irmão do Regente Dom Pedro, Afonso Pires, filho bastardo do que era Mestre de Aviz e de Dona Inês Pires; tem muito relevo indicar este fato, porque nesse ducado aportaria a grande fortuna particular de Portugal, uma vez que Afonso Pires se casara com Dona Beatriz Pereira Alvim, filha do Condestável Nun'Álvares Pereira e de Dona Leonor Alvim; dois séculos mais tarde, em 1640, será um descendente da Casa de Bragança, Dom João IV, quem instituirá a quarta dinastia monárquica de Portugal.

É importante, antes de prosseguirmos, considerar uma distinção que evite o risco do anacronismo. Até depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entendia-se, predominantemente, que era um dever das grandes potências mundiais ensinar e instituir a civilização nos povos menos favorecidos. É verdade que se devem diferenciar os modos com que essas variadas potências se comportaram na tarefa que havia de ser civilizacional −e não de mera colonização econômica. Mas seria de todo anacrônico que, por primeiro, impugnássemos sem mais uma prática política que era aprovada pelo comum entendimento de sua época, de maneira que retrocedêssemos o critério que hoje, mal ou bem, bem ou mal, afirma-se com muita frequência, para reduzir a tarefa civilizadora à ideia de submetimento político e econômico. Por outro lado, se houve−como de fato houve− alguma injusta direção no exercício nessa tarefa, isto não pode imputar-se aos conquistadores hispânicos. É que estes, revestidos de um sentido missional −consequente, em dada medida, de uma luta de oito séculos contra os invasores da Península−, trataram sempre, como bem o sintetizou Camões, de unir a expansão imperial à conversão religiosa: "E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis, que foram dilatando/ A Fé, o Império, e as terras viciosas" (in Os Lusíadas, I, 2).    

Chegamos, pois, ao ponto em que se reconhece, no direito das gentes, a legitimidade do título da ocupação para constituir-se o domínio. Em palavras de Francisco de Vitoria, "as coisas que a ninguém pertence, por direito de gentes são do primeiro ocupante" −quia quæ in nullius sunt, iure gentium sunt ocuupantis (in De Indiis, I, 3, 3). Veja-se esta elucidativa referência de Marcello Caetano:   

"Nos meios rurais, o repovoamento foi antes uma reorganização da vida local, com a restauração da autoridade afirmada em nome do rei sobre a população que por lá andava. Muitos territórios incultos foram a partir de então colonizados por gente de Norte, homens livres ou servos que acompanhavam os magnates a quem o monarca conferia o poder de repovoar ou que procediam por iniciativa própria. O magnate nobre ou eclesiástico, que ia tomar conta de terras abandonadas ou sem dono, procedia por «apreensão» ou, no vocábulo da época, presúria.

Tratava-se de uma ocupação a que o Direito mandava dar toda a publicidade. Por vezes, em sinal do encargo régio que o presor desempenhava, este tomava posse das terras com a sua gente, ostentando o estandarte real e fazendo soas trombetas: é o que os documentos exprimem pela frase cum cornu et albende de rege.

A presúria também podia ser feita por iniciativas de vilãos que entre si repartiam as terras apresadas, repartição que na presúria oficial competia ao magnate-presor" (in História do direito português -1140-1495, ed. Verbo, Lisboa, p. 124).