(da série Registros sobre Registros, n. 336)
Des. Ricardo Dip
1.083. Estamos neste capítulo −que se projeta para tratar do registro da desapropriação imobiliária− transitando por uma sorte de desvio de rota, porque, para procurar melhor compreender o estatuto do domínio público das terras, fomos buscar suas origens na Idade média portuguesa, ali referindo, ainda que brevemente, o instituto da presúria, que, como ficou dito, reconheceu-se, à altura, por instituição integrante do ius gentium.
Aludimos, na sequência, a que a categoria da presúria se estendeu para justificar o domínio das Índias (ou seja, das Américas) por espanhóis e portugueses. Passamos por uma breve referência ao Tratado das Tordesilhas e deparamos, em continuidade, com a discussão acerca de ser domínio ou de mera posse a atribuição das terras, no Brasil, por meio do instituto das capitanias hereditárias. Neste passo, tem bastante relevância considerar o que foi a lei mental, cujo papel parece deitar esclarecedoras luzes sobre a natureza jurídica dessas referidas capitanias.
Que foi, enfim, a lei mental?
É preciso compreender a situação política em que se encontrava Portugal após a morte do Rei Dom Fernando I (aos 22 de outubro de 1383), se quisermos entender as razões daquele que se tornou efetivamente seu sucessor, Dom João I, para a adoção deste instituto singularíssimo que foi a lei mental.
Com a morte do Rei Dom Fernando I, deixando apenas por descendente uma filha, a pequena Beatriz, que se casara com o Rei Dom Juan I de Castela, estabeleceu-se em Portugal uma gravíssima crise sucessória. Já porque boa parte dos nobres e, sobretudo, do povo português, não via com bons olhos fosse castelhano o Rei consorte. Já ainda porque, mediando um pacto entre o Rei Dom Juan I e Dona Leonor Teles de Menezes, viúva de Dom Fernando I, era ela quem se previa permanecer por largo tempo na regência do Reino de Portugal (lembremo-nos aqui da pouca ou nenhuma estima que fruía Dona Leonor Teles junto ao povo português: seu casamento com Dom Fernando fora fortemente impugnado −e levara a sanções gravíssimas contra os objetores, ao ponto de se ter executado um alfaiate, Fernão Vasques, que liderara as impugnações em Lisboa; além disto, recordemo-nos do que provocavam no povo as notícias dos possíveis amorios de Leonor Teles com o Conde de Ourém, o galego João Fernandes Andeiro, que tinha grande influência na política externa de Portugal).
Pois bem, a alternativa que parecia apresentar-se beneficiava o nome de Dom João, um meio-irmão de Dom Fernando I, porque também era filho de Dom Pedro I, mas com Inês de Castro; ocorre que Dom João assassinou sua mulher, Dona Maria Teles (irmã de Leonor Teles), e, tendo de fugir para Castela, foi ali preso por ordem do Rei Dom Juan I. (Façamos aqui uma observação cautelosa: tudo, em rigor, o que se sabe da vida de Dona Leonor Teles de Menezes −uma mulher que, como quer que seja, assumiu um lugar de imenso destaque na história de Portugal− sabe-se graças às crônicas de Fernão Lopes, e calha que a opinião deste grande autor era manifestamente antipática em relação a Dona Leonor Teles, imputando-lhe até mesmo a indução do homicídio sofrido por sua irmã).
Como quer que seja, é neste estado de coisas que surge um terceiro nome para resolver-se a crise dinástica: o de um outro João, que era Mestre da Ordem Militar de Aviz, filho, ele também, do Rei Dom Pedro I, fruto de uma relação com Dona Teresa Lourenço. Em resumo, este Dom João, o Mestre de Aviz, após matar o Conde Andeiro, foi proclamado rei pela vox portucalensium e, depois, aclamado pelas Cortes de Coimbra.
Todavia, esta eleição popular e a o placet das Cortes de Coimbra não eram bastantes para impedir a oposição externa, a irresignação castelhana (de que dá conta suficiente a célebre Batalha de Aljubarrota), e alguma resistência interior: assim o disse a propósito deste nosso assunto, Cândido Mendes de Almeida, "D. João I para subir ao trono de Portugal fez extraordinárias promessas, que cumpriu aos que o ajudassem a repelir os competidores", de maneira que se tornaram frequentes, observou Waldemar Ferreira, "as doações e mercês dos bens da Coroa em contemplação dos serviços prestados" (já deixamos visto o vulto dessas doações quanto ao Condestável Nun'Álvares Pereira). Com isto, era notória a moléstia de os donatários se tornarem independentes do poder político. Dá-se, então, que um jurista notável, o célebre João das Regras, sugeriu a Dom João I a adoção de uma antiga prática (já instaurada com Dom Dinis, em 1321), qual seja a de impor a observância de uma lei in petto −ou seja, de uma norma não escrita, não promulgada, mas que, formada na mente do Rei, regulava, ainda, pois, que desconhecida dos donatários, as doações que lhes eram feitas.
Isto permitiu que o Rei Dom João I −com essa instituição da lei mental, que Cândido Mendes de Almeida, não hesitou em qualificar de "parto da mais requintada má fé"− fosse alterando as doações praticadas, assim, por exemplo, impedindo a sucessão pelas filhas dos donatários, tornando inalienáveis os domínios ou até mesmo revogando as doações. Exemplo emblemático da imposição da lei mental −ao menos segundo a interpretação que deu a estes fatos Teófilo Braga− está na condenação à morte do Duque Dom Fernando, porque resistira ele à reversão dominial das terras que haviam sido doadas à casa de Bragança.
O que nos importa aqui, de modo particular, é saber se as capitanias hereditárias estavam sujeitas a esta lei mental, pois que, de o estarem, não se pode afirmar, sem mais, que elas implicassem verdadeira atribuição dominial aos donatários.
Há, de uma parte, o entendimento de Waldemar Ferreira, para quem o Rei Dom João III abdicou da lei mental, ao criar as capitanias: "Doando as capitanias −disse Waldemar Ferreira− El-Rei pôs à margem a reserva mental da Lei de D. Duarte e com ela rompeu explicitamente, transigindo até ao ponto de outorgar às mulheres o direito sucessório que ela vedava".
Vejam-se, entretanto, as matizações que, a propósito do tema, referiu José Pedro Galvão de Sousa −que foi o maior dos filósofos brasileiros do direito, além de admirável historiador e pensador do direito político−, afirmando, nas páginas de sua Introdução à história do direito político brasileiro (ed. Saraiva, 2.ed., São Paulo, 1962, p. 38 e 39): "Quando, pela circunstância da morte trágica de Francisco Pereira Coutinho, donatário da capitania da Bahia de Todos os Santos, reverteu esta para o domínio da Coroa, terminou a primeira fase da colonização, sendo instalado o Governo-Geral. Outras capitanias foram tendo o mesmo destino ou por abandono, ou por morte dos donatários sem terceiros, ou por confisco, e mesmo por compra". Vale dizer: houve de tudo, de aquisições consensuais a confiscos, e razão parece ter Cesar Trípoli ao distinguir, nos títulos de instituição das capitanias («carta de doação», que se acompanhava de uma «carta de foral»), aquilo que se dava em usufruto e o que se dava ao domínio dos donatários; por isto, pareceu-lhe que mais se tratava, com o sistema das capitanias, de uma concessão do que de uma doação.
Prosseguiremos.