(da série Registros sobre Registros, n. 335)
Des. Ricardo Dip
1.081. Para introduzir o tema do registro imobiliário da desapropriação, entendemos convir um breve exame do estatuto do domínio público, também designado como «estatuto da dominialidade», e a tanto começamos uma sorte de excursão histórica, persuadidos de que, sem conhecer o pretérito, não temos norte a que apontar a proa do futuro.
Percorremos, então, nas duas explanações imediatamente anteriores desta série "Registros sobre Registros", o caminho histórico das presúrias, modo com que os reinos cristãos −ou nobres guerreiros, atuando de maneira privada− reconquistaram, na Península hispânica, territórios que haviam sido invadidos e apossados por povos islâmicos. Ao lado da consequente cristianização desta retomada territorial, houve o estabelecimento do direito de propriedade pelo fato mesmo da recuperação ou reconquista, o que bem resumiu a lição vitoriana de as coisas que são de ninguém (res nullius) serem de quem as ocupar com primazia.
Pois bem, admitida esta concepção como própria do ius gentium, o século XV põe à mostra a pujança de Portugal e de Castela que dilatam seus domínios com as viagens marítimas. Calha, entretanto, que estes reinos conflitavam entre si, cada qual com seus interesses pontuais. Lembremo-nos, a propósito, que se frustrou o propósito do Rei Afonso V, "O Africano", em casar-se com a então Infanta Isabel, meia-irmã do Rei Enrique IV, de Castela, porque a Infanta se casou com Fernando de Aragão, que, à altura, era Rei da Sicília. Deu-se, na sequência, o casamento do mesmo Dom Afonso V com Juana de Trastâmara −ou, como a preferiam chamar os inimigos de Dom Enrique IV, Juana la Beltraneja (modo pouco ou nada amistoso com que se indicava ser ela possível filha não de Enrique IV, mas de Beltrán de la Cueva, Duque de Albuquerque). Consequente dessa desavença foi que se uniram Dom Afonso V, de Portugal, e Dom Enrique IV, de Castela, para tentar impedir que a Infante Isabel ascendesse ao Trono castelhano. Ao fim, vitoriosos Dona Isabel de Castela e Dom Fernando de Aragão, agregaram-se seus reinos, seguindo-se acordos de Portugal e Castela para estabelecer a paz entre estas nações e −o que mais aqui nos importa considerar− dividir o mundo entre ambas.
1.082. Celebrada a paz entre castelhanos e portugueses −o que se deu com o Tratado de Alcáçovas (4-9-1479), tratado este firmado pelo Rei Afonso V, de Portugal, e a Rainha Isabel, a Católica, de Castela, e seu marido, o Rei Fernando, de Aragão, seguiu-se novo tratado, que se pactuou em Tordesilhas, na região de Valladolid. (Tordesilhas foi o local em que, cerca de um século antes, morrera cativa Dona Leonor Teles de Menezes, antiga Rainha consorte de Portugal, viúva do último Rei da Dinastia afonsina, Dom Fernando I).
O Tratado de Tordesilhas celebrou-se em 7 de junho de 1494 entre, de uma parte, os mencionados Reis de Castela e Aragão, Isabel e Fernando, e, de outra parte, Dom João II, "O Príncipe Perfeito", Rei de Portugal. Por esse pacto estabeleceu-se uma linha de demarcação −sobre o Oceano Atlântico−, considerando-se 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Com isto, repartiram-se as zonas de navegação pelo Atlântico e o domínio relativo às terras que se descobrissem no que se chamava de «as Índias» (vale dizer, a América). Esse tratado permitiu a Portugal o domínio do território brasileiro, e, a contar de sua efetiva ocupação, a busca das metas lusitanas: a da propagação de fé católica, a do povoamento, a da garantia do poder político e a do benefício econômico com a maior extensão territorial portuguesa.
As despesas, entretanto, com a povoação do território brasileiro eram tais que sangravam o erário de Portugal, e este foi um dos motivos pelos quais a Monarquia lusitana entendeu de adotar o sistema das capitanias hereditárias, sistema já iniciado em 1504, quando Dom Manuel I, "O Venturoso", criou a Capitania da Ilha de São João, depois designada Capitania Fernando de Noronha. Atribui-se, porém, a Dom João III a adoção mais extensa do sistema das capitanias, que outra coisa não era do que uma forma aparentada dos consequentes jurídicos da antiga presúria: o historiador brasileiro Hélio Vianna, depois de dizer que esse sistema "não constituía novidade em Portugal", observou que era apenas uma adaptação do antigo modo "de doação dos bens da Coroa" (in História do Brasil, ed. Melhoramentos, São Paulo, 1994, p. 62).
Na mesma direção, com apoio em Oliveira Martins, disse Waldemar Martins Ferreira que, com a experiência portuguesa anterior na Madeira e nos Açores, estava "traçada a sorte do Brasil: dividir-se-ia em capitanias, como as ilhas do Atlântico" (in História do direito brasileiro, ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro -São Paulo, 1951, tomo I, p. 34).
Ainda no mesmo sentido, escreveu Boris Fausto: "(…) lembremos que ao instituir as capitanias a Coroa lançou mãos de algumas fórmulas cuja origem se encontra na sociedade medieval europeia" (in História do Brasil, Edusp, 13.ed., São Paulo, 2009, p. 45; saliente-se que o autor entende que as capitanias não concediam domínio territorial aos particulares, mas somente a posse da terra; este será um tema a considerar adiante, nesta série, com uma incursão sobre a célebre «lei mental» idealizada por João das Regras).
Leia-se o que, a propósito, escreveu César Tripoli, na História do direito brasileiro (ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1936, vol. I, p. 84):
"O rei João III (1521-1557), pois, mandou dividir, em 1532, o litoral do Brasil em extensões de cinquenta léguas portuguesas, que constituíram outras tantas capitanias, dando-as, nos anos de 1534 a 1536, a alguns de seus fidalgos beneméritos, capazes, por seus haveres, de fomentar o desejado desenvolvimento colonial, A capitania doada a Martim Afonso tinha uma extensão de cem léguas, e a doada a seu irmão −Pero Lopes− orçava por oitenta.
A determinação dos limites obedeceu a um critério todo peculiar. Não podendo, portanto, os limites das capitanias ser constituídos por acidentes naturais do terreno, porque o território era desconhecido, foram os mesmos estabelecidos mediante linhas geográficas paralelas, traçadas de um ponto da costa, em direção do oeste, até irem entestar com a fronteira dos domínios espanhóis limítrofes, aliás também desconhecidos. Desta maneira, o território do Brasil ficou parcelado em capitanias."
Prosseguiremos, para examinar a natureza jurídica das capitanias hereditárias, incursionando antes pelo tema da «lei mental» adotada pelo Rei Dom João I, fundador da Dinastia portuguesa de Aviz.