Registro de divisões (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 266)

                  Des. Ricardo Dip

 

             944. Na redação original, a Lei brasileira 6.015, de 1973, tinha, no que era então seu art. 168, dispositivo que previa a transcrição −nota bene: transcrição− “das sentenças de desquite e de nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro”. Posteriormente, com a Lei 6.215/1975 (de 30-6), passou a prever-se o registro stricto sensu dessas mesmas sentenças, sobrevindo, enfim, uma alteração tópica dessa disposição, deslocando-se para o campo das averbações (item 14 do inc. II do art. 167, revogando-se o item 22 do inc. I desse artigo).

          Trata-se aí de um dos preceitos que, na Lei 6.015, versam acerca da inscrição de divisões; neste quadro, cuidava-se das partilhas conjugais, reportáveis às hipóteses de separação judicial, divórcio −termo substituinte da expressão «desquite» que se lia no texto original.

          No subsequente item 22 do inciso I do referido art. 167 da Lei 6.015 indicam-se suscetíveis de registro em sentido estrito outras divisões, prevendo-se a inscrição “dos julgados e atos jurídicos entre vivos que dividirem imóveis ou os demarcarem inclusive nos casos de incorporação que resultarem em constituição de condomínio e atribuírem uma ou mais unidades aos incorporadores”.

          A divisão −enquanto se entenda propriedade de uma categoria acidental (a de quantidade)− consiste em que as substâncias corpóreas possam formar um conjunto ou coleção de partes separadas. Neste sentido, só os entes corpóreos são divisíveis, porque só eles têm propriamente partes (apenas em acepção metafórica poderia pensar-se em partes integrantes de entes não dotados de corporeidade, ou seja, entes espirituais). É isto o que se tem vista, num primeiro aspecto, quando se fala da divisão de imóveis, ou seja, de uma divisão de um todo real; calha, todavia, que algo deva acrescentar-se: essa referência à divisão imobiliária não é unívoca, mas analógica, porque não se cuida aí apenas da divisão do todo físico predial, mas também da divisão de um condomínio, é dizer, de uma divisão de poderes jurídicos. Daí que duas sejam as acepções do termo «divisão» no preceito sob exame: (i) a da divisão real −ou seja, a da divisão das partes integrantes de um todo corpóreo; (ii) a da divisão lógica −divisão esta que é um dos três modos do saber e compreende as partes subjetivas (ou espécies) e as partes virtuais ou potenciais do ente (real ou metaforicamente) divisível, de maneira que não se limita aos entes corpóreos.

          O que se dispõe no item 22 do inciso I do art. 167 da Lei atual de registros públicos é a inscrição de variadas classes de divisão imobiliária, sejam essas divisões provenientes de atos extrajudiciais ou, diversamente, de sentenças judiciárias, acrescentando-se a hipótese de demarcação de imóvel, e ainda a de incorporação predial em que se atribuam aos incorporadores unidades edilícias autônomas. Mas, como adiante se verá, o que se hospeda nesse dispositivo legal nem sempre resulta em divisão física do imóvel, dando-se até, ao revés, o caso de refutar-se essa divisão do todo real, tal, por exemplo, o que ocorre quando se adjudica o prédio a um dos comunheiros ao fim do processo especial de divisão.

               945. A ideia de que aqui se trata −qual a de divisão de um dado imóvel e a de divisão de poderes jurídicos sobre a coisa− é a que corresponde à de uma preexistente compropriedade, distinguindo-se, pois, de outras sortes de divisão, a saber a do loteamento e a do desmembramento, exatamente porque, embora, no plano estritamente factual, haja em todas essas figuras a divisão de um ente imobiliário, nestas duas últimas formas (loteamento e desmembramento) não há o necessário suposto da pluralidade de titulares dominiais, coisa que se exige para a hipótese do referido item 22. Sublinhe-se que o condomínio suscetível da divisão em exame é o tradicional ou comum, e não o edilício que é, por sua natureza, indivisível.

          Provável é que ainda tenda a considerar-se, no direito brasileiro em vigor, ser a divisão um ato declaratório de domínio, e não um ato constitutivo de uma nova propriedade (cf., brevitatis causa, Arnaldo Rizzardo, o.c., item 22.10, e Carlos Roberto Gonçalves, o.c., vol 5, p. 393). É verdade que o vigente Código civil brasileiro não reproduziu a norma que, no Código anterior, o de 1916, explicitava esse caráter declarativo da divisão: “A divisão entre condôminos é simplesmente declaratória e não atributiva da propriedade. (…)” (art. 631). Não custa lembrar que esse preceito do Código de 1916, além de atrair críticas, apartava-se da orientação do direito romano. Todavia, parece ter preponderado, para a escolha dessa natureza declarativa da divisão, o escopo de imunizar os proprietários exclusivos de cada parte da responsabilidade quanto a dívidas pessoais de antigos comproprietários, reputando-se cada condômino na condição de titular da parte que lhe viesse a caber qual se o fora desde o estabelecimento inicial do condomínio (cf., a propósito, a observação n. 1 que Clóvis Beviláqua lançou como comentário ao aludido art. 631).  A perseverar esse entendimento, calha não incidir imposto de transmissão nos atos divisórios (vidē Francisco Eduardo Loureiro, o.c., p. 1.284), mas é de atender sempre à correta divisão do imóvel, de maneira que não se inclua, sob o nomen divisão, uma transferência dominial, hipótese esta que, não sendo propriamente de divisão, implicará o cabimento da imposição tributária correspondente.

          A divisão do imóvel pode realizar-se por meio de escritura notarial −supostos sempre a capacidade das partes e o consentimento com a partilha−, ou, diversamente, mediante carta de sentença ao fim de demanda judicial específica, a da actio communi dividundo (arts. 588 et sqq. do Código de processo civil brasileiro de 2015), demanda a que tem direito o condômino, por ser natural ao domínio a tendência de exclusividade: “A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão” (art. 1.320 do Cód.civ.).

          Essa divisão imobiliária põe fim ao condomínio, e, quando se promova na via judicial, acarreta uma de três soluções possíveis: (i) a da partição do imóvel entre os vários comproprietários; (ii) a da alienação do prédio a terceiros, com a partilha, entre os condôminos, do valor pecuniário correspondente à transferência dominial; (iii) a da adjudicação do imóvel a um de seus antigos comproprietários. Por isso, reitere-se, nem sempre o epílogo do processo judicial de divisão implicará uma partilha do todo real imobiliário, embora inevitavelmente esse processo redunde em alguma sorte de extinção de condomínio; fala-se aqui em alguma sorte dessa extinção, porque nada impede que as partes do imóvel permaneçam sob alguma comunhão, que até mesmo pode não ser diversa da que havia na compropriedade inicial: a conjectura é um tanto rara, convenha-se, mas nada impede que ao dividir-se o todo real, extinguindo-se a comunhão então existente, uma ou mais de suas partes se atribua em forma condominial (e não repugna que seja a do mesmo condomínio anterior).

          A via judicial é o remédio para solver o litígio entre os condôminos que resistam à divisão pretendida por um ou alguns dos comunheiros. Mais frequente é que essa resistência emerja da falta de concordância com a forma do retalhamento proposto pelo interessado na divisão; todavia, podem dar-se outros motivos de recusa, tais os indicados, v.g., por Humberto Theodoro Júnior (Terras particulares, 1981): assim, quando não se admita a existência da própria comunhão ou ainda quando não se reconheça o direito de propriedade do pretendente da divisão (item 199).

          Prosseguiremos.