Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre a «tokenização» imobiliária - quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 321) 

                        Des. Ricardo Dip

 

1.049.       Sem recusar, como já o deixamos dito, a competência especulativa na matéria tecnológica e o muito de acerto que ostentam as conclusões críticas dos visitados estudos de Maziteli e Brandelli, e de Jacomino e Unger, acontece que os fundamentos de sua impugnação estão limitados pelos contornos do ius positum.

Este é sempre um −e talvez o principal− dos problemas de quem se restringe pelas fronteiras dogmáticas do direito posto. Ou seja, as conclusões desses referidos estudos, em resumo, podem graficamente sintetizar-se nisto que a «tokenização» imobiliária se opõe ao ordenamento jurídico brasileiro em vigor. E como tudo se passaria, pois, no só plano da positividade legística, esta oposição entre a vigente ordem normativa e a «tokenização» poderá esfumar-se subitamente com o abracadabra de uma nova lei em que o vigente deixe de ser vigente pela só vontade das normas de turno.

Em síntese, concluíram Maziteli e Brandelli e Jacomino e Unger −e nisto, acertadamente− que a «tokenização» de imóveis não pode substituir o sistema formal de publicidade imobiliária adotado no Brasil. Mas −à margem do positivismo a outrance esposado por Jacomino e Unger no tema da «estatalidade» do registro predial−, o fato é que não se apontou fundamento bastante para recusar substancialmente a «tokenização».

Este assunto é muito mais amplo do que seria sugerível por sua consideração restrita ao campo da «tokenização» de imóveis. É um tema que envolve a disputa sobre o reconhecimento de uma ordem jurídica antecedente e superior ao estado, é dizer, precedente das leis determinativas e condicionante de seu conteúdo. Poderia logo pensar-se em determinadas espécies de direitos naturais como o de viver, o de integridade física, o de constituir família, o da honra, da consciência, o de legítima defesa, o de estado de necessidade, mas, isto aqui é que assume importância maior, também o direito de resguardar-se a natureza histórica dos artefatos (i.e., os produtos da atividade humana), entre eles os artefatos ou constructos institucionais, como o são as notas e os registros públicos.

Peço licença para, antes de prosseguir, ler um trecho que serviu de abertura para o tomo II do livro Notas sobre Notas, publicado pela editorial Lepanto e com o selo do Colégio Notarial do Estado do Paraná.  Ali se escreveu: "O fenótipo notarial varia com o tempo, e ainda que o possamos, talvez, em dados casos, lastimar, o fato é que já não é comum ver pelas ruas o parfait notaire de village de Alphonse Daudet, aquele tout petit monsieur en redingote noisette, vieux, sec… Essa mudança de aparência não parece gerar maiores problemas ꟷou, se os produz (a dar razão aos que apontam efeitos no câmbio de ritos; tem-se neste caso uma analogia profana com o brocardo lex orandi, lex credendi), talvez possam remediar-se de modo não de todo incômodo. Todavia, a alteração do genótipo do notário é outra coisa… é a rebelião de sua natureza, é a deserção do Notariado latino".

Pode alguém interpelar como se haveria de falar em «natureza» das notas e dos registros públicos de modo simultâneo com a afirmação de seu caráter artificial −ou seja, de serem eles artefatos, artefatos institucionais, obras de arte instituídas pelos homens e não emergentes de algo independente da vontade humana.

Deve-se a Raimundo Panikker (ou Panikkar, como também consta de alguns de seus livros) um interessante estudo acerca do termo «natureza», estudo em que aponta 20 diferentes acepções principais para este conceito. Entre elas, uma parece merecer aqui mais devida atenção: a «natureza» como o conjunto das coisas, que por apresentarem uma certa ordem, podem reduzir-se a alguns tantos princípios, o que, no mundo moral, corresponderá aos princípios legitimadores da ordem normativa.

Mas quais princípios podem legitimar um juízo de caráter normativo? Decerto, logo os do direito natural e os do direito das gentes  −o que, no caso das notas e dos registros públicos, diz respeito à publicidade jurídica no âmbito social e político. Ora, para realizar essa publicidade, configurou-se ao largo de muitos séculos um tipo ou mais exatamente uma família notarial (e registral, por expansão) que é a do notariado latino.

É exatamente contra essas principalidades que se revela a «tokenização» imobiliária, por não constituir-se como via de publicidade comunitária  −é dizer, pública− e ao afastar-se dos elementos essenciais do notariado latino, ou seja, de seus princípios históricos originantes (fundamenta quodammodo ingenita) e de seus princípios segundos (fundamenta derivata).

São essas principalidades que constituem a essência ou, numa visão operativa, a natureza fundamental e histórica das notas e, estendidamente, dos registros públicos, segundo a família notarial latina.

Desta maneira, não é só e acidentalmente que a «tokenização» imobiliária não se compagine, secundum leges, com o sistema formal da publicidade jurídica adotado no Brasil, senão que essa «tokenização» não se compadece com a natureza mesma do notariado latino. De que segue ser uma atividade contraposta substancialmente ao que, de maneira não apenas circundante (vale dizer, em oposição à lei vigente), mas de modo fundamental constitui a atividade do notariado e dos registros públicos segundo a família notarial tradicionalmente perfilhada entre nós.

Seria possível, dada a contingência dos artefatos institucionais, adotar um modelo diverso do sistema latino que esposamos. Mas a que preço? Com qual vantagem? Com qual aposta de que a mudança seria benigna?

Lembremo-nos aqui, uma vez mais, da ditosa sentença de Tobias Barreto de que as instituições, quando não são filhas do costume, mas produtos abstratos da razão, vão logo confrontar-se com os fatos e revelar sua inconveniência.

As diversas formas de «tokenização», enfim, umas mais, outras menos, parecem, de alguma sorte, serem símiles dos «contratos de gaveta» −contratos digitais de gaveta custodiados num escaninho digital privado. Não são idôneas a consumar a publicidade jurídica no plano social e política. Além disso, em acréscimo, ao apartarem dos negócios imobiliários as figuras do tabelião das notas e do registrador predial, abdicam, quanto àquele, da intervenção jurídica nutrida do cavere e da fé pública, e, quanto ao oficial do registro, de um jurista que custodia, publicamente, não só a segurança estática do domínio imobiliário (e de outros direitos), mas também a do crédito e a do tráfego dos imóveis.

A «tokenização» faz um escambo, trocando uma atividade formal e pública (note-se bem: não estatal, embora) por uma facilidade, ou talvez melhor: por um facilitismo informal e particular. A história das notas e dos registros é como um aval de seu êxito; já a história da ganância do mercado, agora tentando substituir as práticas várias vezes secular dessas notas e dos registros, não se mostra ser um retrato de generosidade na preservação das vantagens com que costuma, num primeiro momento, atrair cooperações ingênuas ou maliciosas. Certa vez, Esaú trocou os direitos de sua primogenitura por um cozido vermelho (coctio rufa), mas ao menos terá comido o guisado; a história dos controladores do mercado faz prever que, fossem eles, Esaú nem com o guisado ficaria.