(da série Registros sobre Registros, n. 322)
Des. Ricardo Dip
1.050. Nesta incursão que estamos a fazer sobre o tema das «tokenizações» imobiliárias, tratemos agora do Provimento 38/2021 editado pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Tal já o deixamos adiantado, esse provimento −subscrito pela Des. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak− teve o louvável mérito de pretender reconduzir a prática da «tokenização», por um dado modo, ao sistema formal imobiliário. O referido Provimento 38/2021 da Corregedoria da Justiça do Rio de Grande do Sul contém somente quatro artigos, dos quais os dois primeiros são os diretamente próprios à atividade notarial e registral.
(A decisão que precedeu à edição desse Provimento pode ler-se em uma publicação digital do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, conforme o que consta da página https://www.irib.org.br/app/webroot/files/downloads/files/SEI_TJRS%20-%203245601%20-%20Despacho.pdf).
O Provimento em pauta, tomando por premissa a hipótese de a «tokenização» ser um negócio jurídico da permuta, esse Provimento 38/2021, estabeleceu, em seu art. 1º, que os tabeliães de notas devam observar, na elaboração de escrituras relativas a essa «tokenização», quatro condições, a saber, como já ficou referido em explanação anterior desta série: "I - declaração das partes de que reconhecem o conteúdo econômico dos tokens/criptoativos objeto da permuta, especificando no título o seu valor; II - declaração das partes de que o conteúdo dos tokens/criptoativos envolvidos na permuta não representa direitos sobre o próprio imóvel permutado, seja no momento da permuta ou logo após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato; III - que o valor declarado para os tokens/criptoativos guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado; IV - que os tokens/criptoativos envolvidos na permuta não tenham denominação ou endereço (link) de registro em blockchain que deem a entender que seu conteúdo se refira aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado".
Os demais três artigos desse provimento dedicam-se, um, a exigências de qualificação e de inscrição pontual da apontada permuta no registro de imóveis; outro, a comunicação do negócio, pelos tabeliães de notas e pelos registradores imobiliários, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf); o terceiro, a indicar a vigência da versada normativa judicial.
1.051. Abstraída a discussão acerca da competência constitucional para a edição de normas relativas ao direito notarial e ao de registros públicos, e mais uma vez reconhecida e louvada a intenção que se adverte no Provimento 38/2021 da Corregedoria Geral da Justiça gaúcha, parece, primeiro, que essa normativa não fosse necessária para a viabilidade da elaboração de escritura tabelioa de permuta e do registro stricto sensu deste negócio jurídico (é disto que trata, enfim, o provimento; cf., brevitatis studio, arts. 421 et sqq. do Código civil brasileiro em vigor, maxime art. 426; veja-se ainda o art. 533 do mesmo Código; a própria Lei 6.015, de 1973, prevê expressamente o registro da permuta: n. 30 do inc. I do art. 167).
Não é só este ponto que merece reflexão acerca do teor do aqui examinado Provimento 38/2021. Acontece que, a entender-se juridicamente possível (torne-se a conferir, a propósito, o que dispõe o art. 426 do vigente Código civil nacional) o negócio jurídico híbrido, tal o é o da permuta mesclada com compra a venda ou ainda o é o da permuta em mistura com a doação (a chamada "permuta sem torna"), põe-se um tema de todo discutível nesse Provimento: é que, ao impor-se "que o valor declarado para os tokens/criptoativos guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado", o Provimento recusa a viabilidade da hibridez da permuta com a doação, o que, pareceria aflitivo da liberdade negocial das partes contratantes.
Assinale-se, a propósito, não ter faltado a Corregedoria Geral da Justiça gaúcha, na r. decisão que precedeu o Provimento em exame, esta de todo correta observação no sentido de que "não parece possível negar a lavratura das escrituras e o registro dos títulos com base simplesmente no fato de que envolvem transação com criptoativos", bem como da não menos correta afirmação de que "a diferença expressiva e exorbitante de valores, entretanto, pode sim desvirtuar o caráter oneroso da avença, pois a permuta de um bem de valor mais vultoso por um de valor econômico relativamente irrisório, sem contrapartida, pode disfarçar uma doação, assim como uma permuta com contrapartida em dinheiro muito grande pode encobrir uma compra e venda". Mas a questão a apontar-se está em saber se deixa de ser possível juridicamente uma permuta sem torna sempre que o negócio envolva criptoativos.
1.052. O primeiro desses dois apontados temas é de pouco relevo prático, efetivamente, porque se trataria somente de uma redundância normativa, muitas vezes justificável pela intenção consolidativa que há nas regulações judiciárias do extrajudicial. O segundo tema, este sim, tem maior relevância, na medida em que parece inibir uma permuta sem torna.
Ocorre que, além disso, alguns outros problemas parecem ter surgido no entorno da aplicação desse provimento, como se pode ver, por primeiro e de maneira pontual, na matrícula de um ofício imobiliário porto-alegrense em que consta a menção (sob o título "observações") da permuta de um imóvel por um token (cópia de parte dessa matrícula pode ver-se na r. decisão que antecedeu a edição do provimento).
Jacomino e Unger apontam o lapso formal da inscrição nessa matrícula, e têm razão nesta crítica, porque no documento, ao menos na parte copiada pelos autores, não há indicação de registro da permuta, senão que a referência a um registro "na blockchain da Ethereum", aludindo-se a isto sob o modo de "observação", ato formalmente não previsto na lei de regência para as inscrições imobiliárias. Lê-se nos mesmos Jacomino e Unger: "O problema reside no fato de que a constituição da «propriedade digital», consumada na plataforma digital, acaba por fundear-se nos atos próprios de registro (constitutivo do direito real) por meio de uma «observação» extravagante lançada na matrícula (…). Ou seja: o registro passa a ser o veículo de publicidade de relações meramente obrigacionais cujo teor será publicizado por seu intermédio, inquinando, eventualmente, a higidez e a segurança de todo o sistema".
Embora pareça não convir com a normativa de regência a afirmação, tout court, da taxatividade dos fatos inscritíveis −taxatividade que vem indicada por Jacomino e Unger−, isto não refuta o acerto de sua conclusão sobre a inviabilidade de, sem mais, admitir o registro imobiliário de títulos com natureza só obrigacional, posta a salvo a possibilidade de uma previsão legal exceptiva.
Acontece que, à luz do versado Provimento 38/2021, o registro objeto havia de ser o de um negócio de permuta mista (imóvel por token), de todo viável. Assim, o equívoco avistável é o do lançamento, na aludida matrícula, de uma «observação» −com a aparente natureza de mera publicidade-notícia− de um «registro» marginado do sistema formal. E, pois, têm razão Jacomino e Unger ao apontar os riscos consequentes de moléstia da segurança jurídica. Isto, contudo, não provém, directe, do aludido Provimento da Justiça gaúcha.
1.053. Dois outros temas parecem ainda merecer atenção acerca da prática registral adotada a contar da edição do mesmo Provimento 38/2021, mas, saliente-se, não por alguma sua pontual previsão.
Em palestra proferida num interessante congresso que teve lugar na cidade de São Luís, capital do Estado de Maranhão, um importante estudioso gaúcho afirmou haver duas práticas adotadas quanto ao registro imobiliário da «tokenização». A primeira, consistente em averbarem-se, na matrícula do imóvel, os negócios dos tokens praticados no ambiente virtual (i.e., mediante os smart contratcs). A segunda, relativa à obrigação de contratar-se uma segunda permuta, para que a negociação estritamente digital venha a reconduzir-se ao sistema formalizado.
Examinaremos esses temas na próxima explanação desta série.