(da série Registros sobre Registros, n. 316)
Des. Ricardo Dip
1.040. Mais de uma vez já se disse que os âmbitos do direito notarial e do direito registral só são pouco menos que infinitos por se tratarem de coisas terrenas. Talvez haja alguma hipérbole nesta opinião, mas o fato é que apenas com dificuldade podemos dizer que algum assunto de relevo jurídico não apresenta interesse notarial e registral.
Pois bem, visitemos em breve excurso um tema que, refletido no registro de uma permuta, diz primeiro respeito ao direito tributário.
Trata-se de uma discussão que se costuma referir à permuta sem torna.
Aproveitemo-nos de um caso concreto, objeto de decisão relativamente moderna da justiça administrativa paulista: em agosto de 2022, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo −que, de conformidade com o direito organizatório da justiça local é o colegiado competente para apreciar e decidir os recursos interpostos em processos de dúvida dos registros públicos− julgou apelação impugnatória de sentença da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca paulistana (AC 1109321-12.2021), que mantivera a recusa de um registro de permuta dirigido ao 10º Cartório imobiliário da Capital do Estado.
O caso, em resumo, punha em discussão a exigência de que confirmassem −com a apresentação dos títulos acessórios pertinentes− tanto a declaração, quanto a recolha do Imposto de transmissão causa mortis e doação (Itcmd), que se reclamava incidente em vista da admitida diferença de valores dos imóveis objeto de negócio de permuta.
Entendeu o apelante que, por sua natureza onerosa, a permuta não pode conciliar-se com a incidência de um tributo, assim o de transmissão causa mortis e doação, definidamente atraído por negócios de caráter gratuito. De conseguinte, segundo o recorrente, era de exigir que, considerada por base de cálculo o valor venal de cada um dos imóveis permutados, fosse recolhido (o que de fato ocorreu) o Imposto sobre transmissão (inter vivos) de bens imóveis (Itbi).
Estabeleceu-se dissídio no julgamento do recurso pelo Conselho paulista da Magistratura (que se compõe por sete desembargadores). Tem-se entendido, com amparo em costume, pois não há mais regra que fundamente este entendimento, que o relator nato dos recursos dos processos de dúvida registral é, no Estado de São Paulo, o Corregedor Geral da Justiça. Coube, assim, ao Des. Fernando Torres Garcia, atual Corregedor Geral da Justiça paulista, a relação do recurso, inclinando-se seu voto ao provimento da irresignação.
Entendeu esse Relator, ad summam, fortificado na doutrina de Nelson Rosenvald, Pontes de Miranda e Afrânio de Carvalho, que, sendo a permuta um contrato oneroso −o que até mesmo se extrai da norma do art. 533 do vigente Código civil, preceituando aplicarem-se à permuta as disposições relativas à compra e venda (negócio este evidentemente oneroso)−, sujeita- se ela à incidência do imposto sobre transmissão de bens imóveis, nos termos do que prevê a Constituição federal de 1988, em seu art. 156: "Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (…) II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição". De que segue não caber, para o caso, a exigência relativa ao imposto sobre doação (Itcmd), indicado este tributo no art. 155 da mesma Constituição federal: "Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos". Disse ainda o Des. Fernando Torres Garcia: "A mera diferença de montantes, sem torna, não tem nada de irregular ou anormal: as partes têm liberdade para contratar permuta, segundo seus interesses pessoais e suas mensurações subjetivas, sem que isso descaracterize o negócio jurídico de troca ou implique a incidência, também, das regras atinentes à doação, instituto este que, evidentemente, não estava na intenção dos figurantes e, pois, não pode ser invocado para abrir espaço para mais uma exação".
Abriu divergência, entretanto, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura paulista, Des. Ricardo Mair Anafe, para quem "a diferença entre os valores dos imóveis permutados, sem torna destinada à recomposição do patrimônio da transmitente daquele de maior valor, faz considerar o excedente como doação e impõe a exigência da declaração e do recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e de Doação ITCMD, ou a comprovação da sua isenção mediante declaração do órgão estadual competente. (§) Isso porque o negócio jurídico, na forma como celebrado, gerou em favor da apelante acréscimo patrimonial decorrente da disposição de bem realizada de forma não oneroso, pela outra permutante, a caracterizar doação, na forma do art. 538 do Código Civil: 'Art.538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra'".
Calcou-se o voto de divergência em quatro precedentes judiciais: dois, oriundos do mesmo Conselho Superior da Magistratura (julgados estes de relação do próprio Des. Ricardo Mair Anafe); os demais, um da 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal paulista, o outro, de sua 6ª Câmara de Direito Público. Firmou-se ainda o voto de divergente em critério indicado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual "(…) o contrato de permuta de imóveis não pode ser equiparado ao de compra e venda para fins de incidência de tributos".
Ao fim do julgamento, a posição do Des. Anafe foi a prevalecente, a ele aderindo todos os demais integrantes do Conselho, ressalvado o Corregedor Geral, que perseverou em seu voto originário.
Declararam votos de vencedores o Decano da Corte, Des. José Carlos Xavier de Aquino, e o Presidente de sua Seção de Direito Privado, Des. Artur Cesar Beretta da Silveira, que invocou, a propósito, uma resposta do fisco estadual paulista a consulta de caráter tributário: "ITCMD. Permuta entre irmãos consanguíneos domiciliados em São Paulo Frações ideais de imóveis localizados no Estado de São Paulo, de valores diferentes, sem torna Doação. [...] I. A permuta envolvendo frações ideais de imóveis de diferentes valores, sem torna, caracteriza uma doação, operação sujeita à tributação do ITCMD em relação às diferenças de valores existentes entre as frações ideais dos imóveis, sendo considerado contribuinte do imposto o donatário, aquele que recebeu em permuta o imóvel de maior valor, tomando-se por referência, no Estado de São Paulo, como valor dos imóveis, o seu valor venal, valor de mercado na data da realização do ato de doação".
Tanto se vê, há, de parte a parte, nesse julgamento administrativo do Tribunal paulista, argumentos que se forram de plausibilidade inaugural.
Sem embargo dessa razoabilidade, cabe observar que parece haver uma preliminar tendência da Corte de São Paulo no sentido da posição que predominou no julgamento do Conselho. Já ficaram referidos os julgados da 11ª Câmara Público do Tribunal local (Rel. Des. Afonso Faro Júnior) e de sua 6ª Câmara de Direito Público (Rel. Des. Silvia Meirelles); acrescente-se ainda acórdão da 2ª Câmara de Direito Público (Rel. Des. Maria Fernanda de Toledo Rodovalho), que disse em seu voto: "(…) embora as partes tenham pactuado que nenhum repasse financeiro haveria, há diferença significativa entre o valor dos imóveis permutados. (§) Esse acréscimo patrimonial configura doação, nos termos do art. 538, do CC: “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. (…) A obrigação tributária decorre de lei e independe da manifestação de vontade das partes. (§) Assim, o fato gerador ocorre quando a hipótese legal se manifesta no mundo real, por meio de situação definida como necessária e suficiente à sua ocorrência (art. 114 CTN). (§) Uma vez constatado o intuito de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, está a autoridade administrativa autorizada a desconsiderar o negócio jurídico (art. 116, parágrafo único, CTN). (§) Portanto, não há ofensa ao princípio da legalidade quando o Tabelião exige o cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, sob pena de responder solidariamente pela omissão (art. 134, VI, CTN)".
Prosseguiremos no tema na próxima semana.