Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre uma questão de direito tributário -parte segunda)

(da série Registros sobre Registros, n. 317)

Des. Ricardo Dip

1.041. Na exposição anterior, pôs-se em cena o decidido, por maioria de votos, pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo acerca do tributo incidente sobre o excesso em caso de permuta sem torna (AC 1109321-12.2021, recurso interposto contra sentença da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo, em processo de dúvida suscitada pelo oficial do 10º Cartório local de Registro de Imóveis).

O caso dizia respeito a diferença de valores dos dois imóveis objeto de negócio de permuta, sobre a qual diferença entendeu o apresentante do título que haveria de incidir o imposto sobre transmissão (inter vivos) de bens imóveis (Itbi), por ser a permuta negócio oneroso. Diversamente, o oficial do 10º Cartório qualificou negativamente o título, exigindo prova do recolhimento de imposto de transmissão causa mortis e doação, tese acolhida pelo Juízo de primeiro grau e que terminou por ser a vitoriosa no julgamento do Conselho Superior, fundado em precedentes da jurisprudência local, tanto administrativa, quanto contenciosa.

O fulcro da divergência está em saber se a diferença de valor entre os imóveis é sugestiva de doação −hipótese em que caberia a incidência do Itcmd− ou se, em vez disso, aponta no sentido de um negócio oneroso (mais exatamente, o de uma compra e venda), por atração, ad summam, da norma do art. 533 do Código civil brasileiro: "Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda (…). E, sendo assim, incidiria o Itbi.

Na permuta, a contraprestação não é em dinheiro, mas em coisa ou em direito. É de Enneccerus a observação de que, na permuta, não se distinguem (salvo formalmente) o preço e a mercadoria, porque o preço é sua mercadoria, e a mercadoria, o preço da permuta.

Há, entretanto, ao largo da história, não apenas uma sucessividade institucional entre a permuta e a compra e venda, mas também uma persistente convivência negocial, ou, em outras palavras, a não de todo rara pactuação híbrida, em que parte da prestação de um dos contratantes se faz em dinheiro e parte em coisa não pecuniária. Pode admitir-se essa mescla contratual. Passa a ter, porém, relevância teórica aferir a natureza do negócio: se permuta ou se compra e venda. Uma corrente, que se diz objetivista, sustenta exigível, para definir essa natureza negocial, adotar o critério do maior valor dos bens: ou seja, se a coisa não pecuniária for mais valiosa do que o valor monetário despendido no negócio, definir-se-á uma permuta; se a coisa for menor valiosa do que o dinheiro oferecido no contrato, tratar-se-á de compra e venda. Outra corrente, subjetivista, prefere considerar a intenção das partes. (E, como é habitual, surgiu uma terceira corrente, eclética, sustentando que só em casos de flagrante maior importância do pagamento em dinheiro é que caiba desconsiderar a permuta em favor da compra e venda).

Calha que, nesta hipótese de negócio híbrido, tem-se −suposto não se considerar simpliciter a contratação como compra e venda− uma permuta com torna em pecúnia, isto é, o valor excedente de uma das coisas trocadas é objeto de pagamento de preço em dinheiro.

Quadro diverso, contudo, é o da uma permuta sem torna em moeda. Ou seja, o valor que excede em uma das coisas permutadas não é objeto de pagamento pecuniário. Isto impede considerar que haja no negócio de permuta alguma sorte de mescla com a compra e venda, pois não há pagamento algum em dinheiro.

Daí que, na troca −que é negócio oneroso− o excesso de valor, sem torna monetária, de uma das coisas objeto do negócio aponta uma nova modalidade de hibridismo: a da permuta com a de uma oferta sem contraprestação, ou, dito de outro modo, uma atribuição gratuita de enriquecimento patrimonial. Isto é uma doação, como a conceitua nosso Código civil: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra".

Então, vejamos: em realidade, não se poderia dizer que uma permuta sem torna implique alguma sorte parcial de compra e venda, porque o valor do excedente de uma das coisas trocadas não é objeto de dispêndio pecuniário. E, além disto, não se poderia negar juridicidade, sem mais, a um hibridismo negocial que apenas realiza uma lícita vontade autônoma dos pactantes, certo que não há impedimento normativo a essa hibridade contratual entre permuta e doação.

No plano tributário, considerado o vigente ordenamento brasileiro, o imposto sobre a transmissão de bens imóveis, que é de competência municipal, tem por hipótese de incidência essa transmissão imobiliária, a qualquer título, mas desde que por ato oneroso (inc. II do art. 156 da Constituição federal de 1988). 

Diversamente, o imposto de transmissão causa mortis e doação −que é da competência dos estados federados e do Distrito federal− concerne às transmissões (seja de coisas móveis, seja de coisas imóveis ou ainda de direitos) com natureza não onerosa (inc. I do art. 155 da Constituição federal).

Embora a tese que sufraga a incidência, quanto à permuta sem torna, do imposto municipal −ou seja, o Itbi−, esteja remetida ao art. 533 do Código civil (que prevê aplicar-se à troca a disciplina da compra e venda), bem como se reporte à natureza onerosa do escambo, o fato é que, realmente, na ordem das coisas efetivamente ocorridas e talvez até mesmo à margem da intenção das partes, não se pode supor compra e venda onde não haja pagamento de preço em dinheiro.

Se o título formal nenhuma referência faz ao pagamento pecuniário da parte desigual do valor das coisas objeto da permuta, não é possível supô-lo, nem desautorizar a conclusão de que houve, realmente, no caso, um hibridismo negocial em que, de um lado, se realizou em parte uma permuta, e, de outro lado, também em parte, uma doação.

Ora, a discussão acerca do tributo a incidir passa, pois, pela admissão dos negócios (ou fatos geradores) em pauta. Quando a norma civil, assim a do art. 533 do Código, manda aplicar à permuta as disposições referentes à compra e venda, ela pressupõe a existência da permuta simples, não o hibridismo negocial. Se não houver, entretanto, compra e venda num contrato híbrido com permuta −hipótese própria da permuta sem torna monetária−, as disposições referentes à compra e venda só podem aplicar-se na parte relativa realmente à troca. Na outra parte do contrato mesclado com a permuta, que pode ser uma doação, não se há de aplicar a norma desse art. 533, porque, tratando-se de doação, há de aplicar-se, à evidência, as normas relativas à doação (arts. 538 et sqq.). 

Daí que, ressalvado o esforço de articulação jurídica da posição vencida no versado julgamento do Conselho Superior da Magistratura, mais provável é o acerto da posição vencedora, entendendo que, nas permutas sem torna pecuniária, caiba a incidência do imposto estadual de transmissão mortis causa e doação.

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Na próxima explanação desta série, trataremos muito brevemente do tema da tokenização imobiliária, ainda como excurso pontual do tema da permuta, o que se explica pelo fato de que a Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande do Sul, por meio de seu Provimento 38/2021, versou, com intenção regulamentar, a troca de bens imóveis por tokens, cuidando de seu título e de seu sucesso registro no ofício imobiliário.