(da série Registros sobre Registros, n. 315)
Des. Ricardo Dip
1.039. A questão principal que aflige a permuta de imóveis parece ser de natureza registral. Sendo objeto da troca dois imóveis, caberão dois registros da transferência, assim como, entre nós, antes da vigência da Lei 6.015, de 1973, cabia uma "dupla transcrição" (Orlando Gomes). Essa duplicidade inscritiva −melhor se diria, pluralidade, não só porque a permuta pode envolver mais de dois imóveis, senão que também porque a diversidade das inscrições abrange os indicadores−, repete-se: essa multiplicidade inscritiva já se previra em nossos ordenamentos anteriores à Lei 6.015.
Assim, no Regulamento registral brasileiro de 1865 (Decreto 3.453, de 26-4-1865), dispunha o art. 281: "Quando o objecto da transcripção fór uma permuta ou subrogação do immoveis, haverá duas transcripções com referencia reciproca, e numeros de ordem seguidos no Protocollo, e no livro de transcripção, sendo támbem distinctas e com referencia reciproca as indicações do Indicador real".
Reproduziu-se quase literalmente esse texto no art. 256 do Decreto 370/1890 (de 2-5). Essa reprodução não surpreende, se nos lembramos de que, implantada, no Brasil, com o levante militar de 1889, a forma de governo republicana, logo o governo assumido pelo Marechal Deodoro da Fonseca tratou de substituir as leis imperiais por leis formalmente novas, preservando, embora, de modo rotineiro, o conteúdo das antigas leis.
Pouco diverso, enfim, foi o texto do art. 203 do Decreto 4.857/1939 (de 9-11): "Na permuta haverá duas transcrições com referências recíprocas e números de ordem seguidos no protocolo e no livro de transcrição, sendo também distintas e com referências recíprocas as indicações no indicador real".
Já Lysippo Garcia, que, com apoio em Troplong, não admitia o registro parcial da permuta, remontou-se a controvérsia surgida na doutrina francesa, chegando a apontar a circunstância de não ser fácil evitar que apenas uma das transferências fosse levada ao registro, sobretudo quando os imóveis objeto se situassem em diferentes circunscrições. É verdade que, ao tempo de nosso Regulamento registral de 1939 (Decreto 4.857), vigorava uma regra que obrigava o registro relativamente a todos os imóveis permutados (par. único do art. 211: "Em caso de permuta, serão, pelo menos, três os exemplares, sendo a transcrição feita obrigatoriamente em todos os imóveis permutados, ainda que só um dos interessados promova o registo").
O fato, porém, é que não se entrevê maneira de evitar de todo alguns riscos para a preservação de uma suposta incindibilidade negocial na permuta. É que, especialmente quando os registros aquisitivos devam perfazer-se em ofícios imobiliários diversos, acontece, rotineiramente, que o título se avantaje, no tempo, sobre outro: ainda que se trate, por exemplo, de dois traslados, haverá sempre a possibilidade de um diferente dispêndio temporal; ora, porque a apresentação de um tarde em relação a outro; ora, porque a tramitação, em um ofício, possa ser menos célere do que em outro. Isto sem contar a possível conduta de um permutante adquirente não apresentar o título ao registro.
Cogitou-se, em alguma ocasião, de adotar entre nós −ou pela mais recomendável via legislativa, ou mediante o que se tornou de fato comum: a normativização administrativa de origem judicial−, um mecanismo de bloqueio dos correspondentes registros, de maneira que só se efetivariam as inscrições quando ambas estivessem em condição temporal de simultaneidade registral.
Isto, entretanto, por mais pudesse solucionar parcela considerável dos problemas, não os resolvia inteiramente. É que não se impede, por exemplo, que haja permuta de imóvel situado no Brasil com prédio localizado no exterior, e não haveria modo de impor a concomitância registral por meio de norma e prática nacionais.
Posto o problema, adveio a paulatina gestação de uma doutrina, entre nós, que tendeu a considerar cindível, para os fins registrais, o título da permuta. Neste sentido, mencionem-se, com intuito exemplificativo, o registrador Ademar Fioranelli, o tabelião de notas Antonio Albergaria Pereira, e os magistrados paulistas Gilberto Valente da Silva e Josué Modesto Passos. Também no âmbito da jurisdição registral, ao menos dois julgados do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo alinharam-se com essa mesma conclusão doutrinária: a AC 1004930.06.2015 −originário de Mogi Guaçu− e a AC 1000311.58.2016, de Americana, este último com expressiva orientação unânime.
Já o deixei dito em exposição anterior desta série "Registros sobre Registros", persuadi-me da orientação sufragada por essa referida doutrina.
Os imóveis envolvidos numa permuta possuem dúplice função: uma, a de serem objeto material de aquisição jurídica; outra, a de serem instrumento de pagamento.
A unidade negocial da permuta não implica, por si só, negativa da autonomia jurídica dos títulos de aquisição. Essa autonomia provém da autonomia mesma de seu objeto material: cada imóvel é, por evidente, autônomo, tanto na realidade, quanto na esfera registral. Por isso mesmo, a evicção e o vício redibitório, podendo embora caracterizar o desfazimento da permuta, não obrigam necessariamente a isto. Nada impede que o prejudicado possa escolher entre a indenização, a execução específica da obrigação de registrar ou o recobro do imóvel que lhe serviu de pagamento para a permuta frustrada (veja-se, a propósito, Pelayo De La Rosa Diaz).
Entender, diversamente, que a falta de registro leve sempre à resolução negocial importaria em admitir pudesse um dos contratantes dispor de uma condição potestativa para desfazer a permuta (bastaria, pois, não levar o título a registro, para impor ao outro contratante a resolução unilateral).
Nada estorvaria, de toda a sorte, que as partes estabelecessem condições −suspensiva ou resolutiva− para garantir a integralidade dos registros de transferência.
Acrescente-se que, suposta a precedência do registro aquisitivo de um dos imóveis permutados, com sucessivo registro de sua alienação a terceiro, o negócio jurídico da permuta mais não poderá desfazer-se, incabível, ainda, uma demanda de caráter reivindicatório (cf., por brevidade de causa, a doutrina de Carvalho de Mendonça). Isto resulta de exigências da segurança jurídica −neste particular, a dinâmica−, e provém da característica autonomia de cada matrícula registral.
Por fim, a Medida provisória 1.085/2021 e, depois dela, a Lei 14.382/2022 incluíram na Lei 6.015 a previsão de registro da promessa de permuta.
A novidade parece atender à realidade negocial circundante. É certo que novos problemas advirão com essa nova hipótese inscritiva, mas a experiência −já relativamente longeva− com o registro da promessa de compra e venda (compra e venda que é figura tão próxima da permuta) leva a acreditar em uma prognose de êxito na solução desses problemas que, adivinha-se, estarão no entorno do registro da promessa de permuta.