Sobre o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio (sqq. -décima-sétima parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 252)

                             Des. Ricardo Dip

 

            920. Prescreve a Lei brasileira 4.591, para o registro da incorporação imobiliária, que se apresente ao oficial do registro “atestado de idoneidade financeira, fornecido por estabelecimento de crédito que opere no País há mais de cinco anos” (letra o do art. 32).

Nosso substantivo «atestado» (do latim attestatio, onis) exprime um termo análogo; não faltará que se diga ser um termo «equívoco», se, ao lado de sua classe substantiva, considerarmos o fato de a palavra «atestado» ser também suscetível de exercer função adjetiva (com o sentido não só de pleno, cheio, abarrotado, mas também de bêbado, embriagado, ébrio; isto vem da palavra «testo»: a tampa de um recipiente; atestado é «estar cheio até o testo»). Naquela primeira categoria, a de substantivo, o termo é análogo porque abrange um sentido trivial −o de testemunhado− de par com outro mais restrito, o de certificado.  Num e noutro caso, o atestado é uma declaração que, de maneira estrita, deve ser escrita e assinada, para exprimir, em atenção a objetivos morais e jurídicos, a verdade de um dado fato. Mas, isto não se pode negar, o usus loquendi atual abarca declarações orais e até induções gestuais: “Ao silenciosamente retirar-se da sala, Fulano atestou sua indignação”). Há atestados de caráter público −expedidos por autoridades públicas (disse De Plácido e Silva, in Vocabulário jurídico, que declarações dotadas, então, de fé pública), e atestados de caráter privado.

A Lei 4.591 exige a apresentação de um atestado de idoneidade financeira, que Melhim Namen Chalub conceitua: “documento em que o estabelecimento de crédito informa o conceito do incorporador, em razão de sua atividade econômica e das suas relações empresariais com o estabelecimento, fazendo menção ao empreendimento planejado” (o.c., p. 71). Caio Mário criticou incisivamente essa exigência legal, entendendo-a “sugerida naturalmente por quem não tem experiência de negócios” (Condomínio e incorporações, o.c., p. 266), uma vez que −prossegue o autor− esse atestado “é inócuo, não obriga o banco, (…) figura como atestação meramente graciosa”, sem com ele aumentar ou diminuir “a solvência do incorporador”, nada acrescentando “em matéria de segurança para os candidatos à aquisição” (no mesmo sentido, Ademar Fioranelli, reportando-se à opinião de Caio Mário, diz que a exigência do atestado deveria ser “riscada do rol dos documentos” impostos para o registro da incorporação −o.c., p. 580).

Diversamente, contudo, a Flauzilino Araújo dos Santos parece que a seriedade do incorporador, no conjunto de seus negócios, exprime um tipo a mais de garantia: “A inadimplência de contratos em geral, e muito mais dos contratos imobiliários, tem efeitos perversos sobre o custo social que, afinal, é pago por toda a sociedade, pois dá origem a comportamentos emocionalmente violentos, faltas ao trabalho, doenças psicossomáticas e outros males que levam a movimentação de toda a máquina estatal policial, judiciária, administrativa, da saúde etc., que poderia ter permanecido apenas latente” (o.c., p. 246).

É bem verdade que essa atestação de idoneidade financeira −voltada, sobretudo, a um quadro pretérito do status do incorporador− não tem eficácia para garantir matéria futura e contingente (“não é equiparável a uma constituição de fiança, nem de aval” −Melhim Chalhub, p. 71), mas não parece irrazoável admitir que o atestado expresse ao menos uma certeza de tendência, é dizer, algo que testemunhe uma dada inclinação, neste caso negocial, resultante da atividade do incorporador ao largo do tempo. E isto beneficia a intenção legislativa: trata-se de pôr à mostra tenha o incorporador recursos financeiros disponíveis e experiência negocial bastante para satisfazer a consecução do empreendimento imobiliário.

Note-se que a normativa de regência impõe seja o atestado expedido por estabelecimento de crédito que opere no Brasil há mais de cinco anos −contados da data da expedição do documento−, além de vincular-se singularmente com o empreendimento específico de incorporação, de modo que não se admitam atestados de caráter geral (cf. Flauzilino Araújo dos Santos, p. 247).

             921. Por fim, a última das alíneas (p) do art. 32 da Lei 4.591 prevê se apresente ao registro de imóveis, para a inscrição da incorporação imobiliária, «declaração, acompanhada de plantas elucidativas, sobre o número de veículos que a garagem comporta e os locais destinados à guarda dos mesmos».

Bastante diversificado é o modo como se apresentam as vagas de garagem nos condomínios, desde as vagas coletivas (garagem de uso comum) às vagas autônomas, passando pelas apenas vinculadas às unidades edilícia autônomas, sem contar que o conjunto mesmo das vagas se tome por unidade autônoma Ademar Fioranelli). Como quer que sejam, atraem de fato “discórdias e reclamações de seus usuários” (Fioranelli, p. 581) −a ponto de Mario Pazzuti Mezzari (o.c., p. 297) considerar ser a questão das vagas de garagem a mãe dos conflitos (mater rixarum), o que põe em relevo a importância não apenas, primeiro, da declaração a que se refere a letra p do art. 32 da Lei 4.591, mas por meio da prudente análise dessa declaração pelos registradores −aferindo-lhe a exatidão mediante seu confronto com os demais documentos apresentados pelo incorporador.

            922. A cidade contemporânea pode, em dado aspecto, reputar-se uma concentração ou condensação de funções, em que tendem paulatinamente a aumentar e a tornar-se mais e mais e complexas as muitas atividades de comércio e de serviço (setor terciário da economia), propiciando, em alguns casos, uma hiperconcentração funcional em torno de um centro (que é essencial a toda cidade: cf. Patricio Randle, El pensamiento urbanístico en los siglos XIX e XX, 1985, p. 15).

Tal o observou, entretanto, este mesmo e notável urbanista argentino, a vida urbana é um modo de vida humana social, e a cidade não é só, nem principalmente, sua expressão arquitetônica. Ainda assim, contudo, não se pode ignorar que a cidade (urbs) é um componente da polis, e que a base do urbano (da urbs), vale dizer, do espaço urbano ordenado está naquilo que os romanos designaram com a figura jurídica do non ædificandi (in Aproximación a la ciudad y el territorio, 2000, p. 56 e 83). Dessa maneira, assumem particular importância, entre os índices urbanos, os coeficientes moderados de ocupação dos terrenos e de densidade das edificações, já que não se trata de amontoar pessoas, mas de permitir-lhes uma solidária harmonização, do que segue não se deva buscar o preenchimento de todos os baldios, mas, isto sim, preservar “los vacíos que como los silencios en la música juegan un papel decisivo en la composición armónica”.

Assim, a construção de edifícios em condomínio parece melhor beneficiar o non ædificandi, permitindo a mais próxima −e mais rápida− interação com o centro das cidades, reduzindo ainda o grave problema dos transportes de pessoas e de bens.

Daí a relevância de uma legislação que estimule as incorporações imobiliárias, sem descuidar, todavia, dos interesses dos adquirentes das unidades autônomas, o que, de um modo admitidamente efetivo, pode dizer-se em geral alcançado com a Lei brasileira 4.591, de 1964, cujos resultados muito estão a dever, entretanto, à atividade dos registradores imobiliários, no exercício criterioso da qualificação dos títulos apresentados para o registro das incorporações.