Sobre o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio (sqq. -quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 239)

                               Des. Ricardo Dip

900. As três primeiras alíneas do art. 32 da Lei 4.591, de 1964, remetem-se, para viabilizar o registro da incorporação condominial, à caracterização do status jurídico do imóvel objeto, não só quanto a seu quadro atual (rectius: ao modo de um instantâneo, como o diria Carnelutti), mas também quanto à história de seu vintênio anterior. Por isso, essas alíneas preceituam o arquivamento “título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel, não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais e inclua consentimento para demolição e construção, devidamente registrado” (alínea a); das “certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativamente ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador” (alínea b); e do “histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros” (alínea c).

   901. Embora, em sua letra, a Lei 4.591 refira-se ao título de propriedade do prédio, remetendo-se ainda à promessa, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de sua permuta, esse elenco, que é meramente exemplificativo (cf. Flauzilino Araújo dos Santos, c., p. 218; Mezzari, o.c., p. 163-7), contemplando os títulos todos que indiquem o domínio pleno do imóvel ou o direito de sua aquisição, um e outro com seu correspondente registro. Em consonância com essa nota de estar in numero aperto o rol dos títulos abrangidos pela letra a do art. 32 da Lei 4.591, ensina Melhim Namen Chalhub, com remissão ao entendimento de Nascimento Franco e de Nisske Gondo, a suscetibilidade da permuta do terreno por unidade a nele construir-se, bem como acrescenta a hipótese de promessa dessa permuta (o.c., p. 60).

              Saliente-se que, em todo seu espectro, os títulos devem estar previamente inscritos no registro imobiliário para permitir-se o registro da incorporação. Assim o diz Mário Pazzuti Mezzari: “É regra sem exceção: qualquer que seja o título deverá estar ele devidamente registrado no Registro de Imóveis” (o.c., p. 153; não diversamente Melhim Chalub, o.c., p. 59). Mas, com razão, mesmo jurista e registrador gaúcho ensina que nada impede iniciar-se o processo de registro de incorporação sem o antecedente registro do título aquisitivo, contanto que, antes de registrar-se aquela, inscreva-se a aquisição.

              É do texto da alínea a do art. 32 da Lei 4.591 que se arquive no competente ofício predial o título de propriedade (ou os outros títulos aquisitivos de direitos), com que não se admitiu, ao menos de acordo com a letra da lei, a só exibição de certificado da matrícula ou da transcrição aquisitiva do imóvel objeto. Em que pese a, prima facie, parecer-lhe isso exigência exagerada –“Se o título já se encontra registrado, bastaria certidão de matrícula ou da transcrição…”–, Ademar Fioranelli termina por explicar a possível razão desse excesso aparente, porquanto, diz ele, nem tudo o que se estipula em uma negociação consta do registro correspondente, dando exemplo com o tema do consentimento para a demolição e construções existentes no imóvel (o.c., p. 570).

              Controverso embora o cabimento de apresentar-se esse título por meio de cópia autenticada, entende-o possível Mário Mezzari, considerando que o escopo do arquivamento previsto na lei de regência é somente o de dar publicidade de seu conteúdo (o.c., p. 153). Outrossim, tratando-se de título de promessa de venda e compra de imóvel urbano objeto de loteamento (Lei 6.766, de 19-12-1979) não se exige que a instrumentação se faça por escritura notarial (art. 26; vidē Flauzilino dos Santos, p. 218, nota 34); ainda os contratos relativos a imóveis não loteados, segundo entendimento preponderante, parecem suscetíveis de instrumentar-se por via particular (assim porque a Lei 649, de 11-3-1949, alterou a redação do art. 22 do Decreto-lei 58, de 10-12-1937; cf. Mezzari, p. 162).

              Tendo em conta que não apenas o proprietário tabular do imóvel, mas também o promitente comprador do terreno, cessionários da promessa de compra ou ainda promitentes cessionários possam ser incorporadores e terem, portanto, legitimação para promover o registro do empreendimento, muito importa a satisfação dos supostos que a normativa de regência impõe quanto aos títulos referentes a direito aquisitivo do imóvel. Recolhem-se do texto da letra a do art. 32 da Lei 4.591 esses supostos, que se agregam à exigência incontornável de prévio registro do título aquisitivo: (i) o de ser irrevogável e irretratável a promessa de compra e venda; (ii) tendo o incorporador a imissão na posse do imóvel; (iii) sem que cláusula alguma lhe impeça a alienação em frações ideais; (iv)  indicando-se o consentimento para demolição e construção.

              Salientemos aqui apenas três aspectos, dentre muitos outros que frequentam os cartórios imobiliários: (i) o da posse do imóvel; (ii) o de projetar-se a incorporação sobre dois ou mais terrenos; (iii) o da aquisição de imóvel confrontante no curso da incorporação.

              Quanto ao primeiro ponto, pode dar-se o caso de o imóvel objeto da incorporação estar sob a posse de terceiro, o que não impedirá o registro do empreendimento desde que se indiquem, expressamente, a natureza dessa posse, as condições da despossessão e a data assinada para a imissão possessória pelo incorporador (cf. art. 38 da Lei 4.591: “Também constará, obrigatoriamente, dos documentos de ajuste, se for o caso, o fato de encontrar-se ocupado o imóvel, esclarecendo-se a que título se deve esta ocupação e quais as condições de desocupação”). Diz, a propósito, Flauzilino Araújo dos Santos, que essa ocupação do imóvel por terceiro poderá repercutir no prazo da construção do edifício, de maneira que se justifica o tratamento explícito da matéria nos ajustes referíveis ao projeto, e acena, em acréscimo, ao disposto no art. 37 da mesma Lei 4.591: “Se o imóvel estiver gravado de ônus real ou fiscal ou se contra os alienantes houver ação que possa comprometê-lo, o fato será obrigatoriamente mencionado em todos os documentos de ajuste, com a indicação de sua natureza e das condições de liberação”.

              De todo possível é que o projeto de construção do edifício abarque mais de um terreno. O suposto material é a contiguidade dos imóveis, de sorte que, antes do registro da incorporação, devem eles agregar-se em uma só matrícula (hipóteses de fusão ou de unificação –arts. 237 e 238 da Lei 6.015, de 1973). Observa, entretanto, Melhim Chalhub, que essa agregação ou anexação, se os imóveis objeto forem de diversa titularidade tabular, exigirá precedente permuta de quinhões entre os legitimados registrais (o.c., p. 61).

              Por fim, não é incomum que se cogite do registro de uma incorporação na pendência ainda de adquirir-se um terreno lindeiro sobre o qual vá, de um modo ou de outro, refletir o projeto. Não se trata de hipótese de solução única, porquanto diversas as possibilidades de reflexo da agregação pendente. Pode ocorrer que não se pretenda realizar obras no imóvel confrontante, de maneira que não haja necessidade de alterar o quadro de áreas ou o memorial descritivo das unidades autônomas; o mais a exigir, nesta circunstância, é a atualização dos custos construtivos, porque as despesas de aquisição (se ainda não o foram) devem ser acrescentadas ao projeto (cf. Mário Mezzari, o.c., p. 333). Pode, contudo, ser caso de edificação, seja referente a uso comum ou até a novas unidades autônomas– no terreno adquirido de maneira superveniente, durante ainda o curso da incorporação, e, diante dessa nova situação, caberá aferir-lhe a consonância com o projeto inaugural, de sorte que, pequena a mudança (p.ex., mera criação de áreas de uso comum ou de vagas de garagem), diz Mezzari que não haverá necessidade de novo registro da incorporação, bastando averbar a mudança. Mas –em palavras do mesmo Mário Mezzari– “havendo alteração profunda no projeto, com criação de novas unidades autônomas, descaracterizando o projeto inicial, então a incorporação anterior deverá ter seu registro cancelado, devendo ser feito registro na matrícula onde forem unificados os terrenos” (p. 334).

              Assinale-se ainda que toda e qualquer alteração do projeto registrado deverá contar com a indispensável anuência dos promitentes compradores (ou cessionários as promessas aquisitivas) de frações ideais que estejam vinculadas às unidades autônomas pendentes de construção; ou, diversamente, os que já sejam proprietários dessas frações, hão de adquirir em nome próprio –e em conjunto com o incorporador– o terreno confrontante que se agregará ao inicial (cf. Mário Mezzari, o.c., p. 334). Averbe-se não parecer juridicamente possível a antecipação da referida anuência sem que se especializem as alterações do projeto, pois que isso remataria em autorizar-se modificação unilateral do contrato (cf. o que dispõe o inc. XIII do art. 51 da Lei 8.078, de 11-9-1990).