(da série Registros sobre Registros, n. 240)
Des. Ricardo Dip
902. Tal ficou dito, o incorporador somente pode “negociar sobre unidades autônomas” (caput do art. 32 da Lei brasileira 4.591, de 1964) após o registro da incorporação.
De logo, embora não falte quem o haja sustentado diversamente (p.ex. Elvino Silva Filho, cf. item 894, retro), prevalece o entendimento de não se exigir o registro da incorporação quando o incorporador não almeje alienar as unidades autônomas futuras do edifício em construção ou com construção projetada. Assim o diz Marcelo Terra: “Para iniciar as obras do edifício, o incorporador necessita, apenas, do capital necessário e da licença administrativa de construção”; prosseguindo: “O capital pode ser próprio ou de terceiros. Este último obtém-se ou mediante empréstimo ou com o produto da alienação das futuras unidades autônomas”; e remata o mesmo autor: “Se o incorporador investir apenas capital próprio, desnecessário será o registro da incorporação” (in “Permuta do terreno por área construída”, palestra proferida no XVII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil -Caxambu, setembro de 1990; cf. Doutrinas essenciais -Direito registral, org. Sérgio Jacomino e Ricardo Dip, vol. III, p. 483 et sqq.; a citação refere-se à p. 505).
Todavia, até mesmo com possível incursão nas penas cominadas no inciso I do art. 66 da mesma Lei 4.591, a conduta de o incorporador negociar “frações ideais de terreno, sem previamente satisfazer às exigências” dessa lei caracteriza, em tese, contravenção penal.
Vem de molde, assim, considerar neste passo o tema da alienação de unidade futura que se ajuste por meio de sua permuta (ou promessa de permuta) com terreno adquirido pelo incorporador. Mário Mezzari ilustra de modo cristalino o contrato em exame: “alguém, dono do terreno, transmite definitivamente a propriedade do mesmo para um terceiro, possivelmente o futuro incorporador; e este, em contrapartida, compromete-se a entregar uma ou mais unidades autônomas que edificará no próprio terreno” (o.c., p. 153). Trata-se de negócio que, em palavras de Ademar Fioranelli, “comumente ocorre” (o.c., p. 570), o que, por igual, diz Melhim Chalhub: “A permuta, ou a promessa de permuta, de parte ideal de um terreno por unidades imobiliárias a serem construídas no local é contrato de utilização corrente no mercado das incorporações imobiliárias” (o.c., p. 232); interessante, a propósito, o entendimento de Chalhub (no mesmo sentido, Flauzilino Araújo dos Santos, o.c., p. 219) em limitar a alienação do terreno a uma parte ideal, porquanto devendo as unidades autônomas futuras correspondência, com efeito, a frações ideais desse mesmo terreno, o proprietário-permutante reservaria algum domínio do imóvel; não é, contudo, a orientação prevalecente, salvo se, de maneira expressa, houver essa reserva no título da permuta.
O problema avistável, portanto, é o de que, antes do registro da incorporação, haja uma negociação envolvendo unidade autônoma futura.
Uma visão sistêmica da Lei 4.591/1964 –integrando-se as normas de seus arts. 32 e 39– permite resolver a contento a apenas aparente inviabilidade dessa permuta. Diz Marcelo Terra que “a conciliação da regra do art. 32 com a do art. 39 da Lei de Condomínio e Incorporações permite esta hermenêutica”.
Não é demasia, de toda a sorte, observar que, para ladeá-la, seria possível a bipartição do ajuste, com a alienação isolada do terreno (com ou sem reserva de quinhão pelo proprietário) e, em outro título, a promessa de venda ou de dação da unidade autônoma (cf. Chalhub, p. 233). Dar-se-ia que, por primeiro, se registraria a aquisição do terreno; em seguida, a incorporação; por fim, a promessa. Mas se trata aí não somente de uma solução artificiosa –porque, na realidade, haveria o negócio da permuta–, senão que contra-econômica.
Lê-se no art. 39 da Lei 4.591: “Nas incorporações em que a aquisição do terreno se der com pagamento total ou parcial em unidades a serem construídas, deverão ser discriminadas (…)” etc. Ou seja, a própria normativa de regência prevê possa a aquisição do terreno em que se vá efetivar o empreendimento edilício ocorrer mediante o pagamento com unidades a serem construídas. Vale por dizer, que essa norma do art. 39 da Lei 4.591 excepciona o disposto em seu art. 32, assim o pensa Marcelo Terra: “O negócio jurídico do art. 39 constitui exceção à regra que veda ao incorporador negociar futuras unidades autônomas antes do prévio registro do Memorial de Incorporação” (o.c., p. 513).
A discussão que se venha a estabelecer sobre o contrato específico a que deva corresponder essa previsão legal –compra e venda única ou dúplice, convertida ou não em obrigação de fazer, dação em pagamento, empreitada, permuta ou promessa de permuta (cf. Marcelo Terra, p. 486 et sqq.)– não interfere, no fim e ao cabo, com a licitude do ajuste que tenha por objeto a unidade a construir. Seus supostos estão em que essa negociação diga respeito à aquisição do terreno em que se dará a incorporação e que sempre se trate de ajuste irrevogável. Melhim Chalhub (p. 234) agrega, em favor da viabilidade jurídica dessa permuta, a norma do art. 483 do Código civil brasileiro de 2002 –“A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”–, norma essa aplicável à permuta à conta do que dispõe o art. 533 do mesmo Código: “Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda (…)”.
Tendo em linha de consideração que a permuta ou a promessa de permuta de terreno por unidade autônoma futura se autorizam em razão de admiti-la norma, a do art. 39 da Lei 4.591, de 1964, que excepciona a previsão geral de seu art. 32, controverte-se também sobre a necessidade de proceder-se ao imediatamente sucessivo (uma quase concomitância) registro da incorporação.
Já em fins da década de 80, era doutrina de Gilberto Valente da Silva a de que apenas poderia registrar-se a permuta de terreno por unidade autônoma futura se, quase simultaneamente, fosse registrada a incorporação, e esse é o entendimento a que parece inclinar-se a jurisprudência administrativa paulista, de que dá exemplo decisão da Juíza Tânia Mara Ahualli, que foi Corregedora Permanente dos registros imobiliários da Capital de São Paulo, como se lê em sentença de 30 de setembro de 2019: “A exigência do registro da incorporação e da escritura [de permuta] deve ser mantida”, porque, prossegue, “não há unidades específicas, devidamente descritas e individualizadas, mas apenas a reserva de um número dessas frações, que serão indicadas posteriormente de maneira individual (…)” (processo de dúvida 1046659-80.2019).
Diversamente, contudo, Marcelo Terra argumenta que, de fato, sempre haverá um “hiato temporal” entre essas inscrições, primeiramente, como se impõe, a da permuta, para admitir-se depois a da incorporação. Desse modo, não há, verdadeira e sequer possivelmente, uma concomitância dos registros (o.c., p. 510). A esse entendimento –de que, pois, viável o registro da permuta sem imediata sucessividade do registro da incorporação– inclina-se também Mário Mezzari (o.c., p. 485-6). Parece solução em harmonia com a lei que, com efeito, não exige essa quase concomitância dos registros, nem indica ser o pedido do registro da incorporação fator condicionante do registro da permuta. Isso mesmo já o havíamos admitido (cf. o item 591 do tomo III destes Registros sobre registros), afirmando a possibilidade de cisão do título de permuta.