Sobre o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio (sqq. -sexta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 241)

                             Des. Ricardo Dip

903. Prosseguindo no exame dos documentos que devam arquivar-se no ofício imobiliário nos termos do art. 32 da Lei 4.591, de 1964, consideremos agora o tema das certidões. A matéria vem prevista na alínea b do aludido art. 32, lendo-se nele caiba ao incorporador apresentar, para o arquivamento no registro predial, “certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos, de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativamente ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador”. Assim, as certidões hão de referir-se (i) ao próprio imóvel sobre o qual se projeta a incorporação, (ii) ao alienante desse imóvel e (iii) ao incorporador.

Trata-se de prudente exigência de confirmação do status jurídico relativo ao domínio do imóvel e às condições econômico-financeiras de seu proprietário e do incorporador (cf. Mario Pazutti Mezzari, o.c., p. 196), o que mais aparenta justificar-se quando se tenha em vista que o empreendimento se lança à captação de capital (assim, Caio Mário, o.c., p. 263).

Não se pretende, com essas certidões, afastar, de maneira absoluta –o que seria de fato impossível–, os riscos da incorporação, até porque, como observou Melhim Chalhub (o.c., p. 61), a expressão legal “certidões negativas” (letra b do art. 32) é imprópria, uma vez que a mesma Lei 4.591, no § 5º de seu art. 32, prevê não impedir o registro a só “existência de ônus fiscais ou reais, salvo os impeditivos de alienação”, admitindo-se a inscrição “com as devidas ressalvas”, i.e., “mencionando-se, em todos os documentos, extraídos do registro, a existência e a extensão dos ônus”.

Sem embargo disso, a apresentação das certidões beneficia o conjunto dos adquirentes, dando-lhes notícia de que o imóvel possa regularmente alienar-se –reduzindo, pois, os riscos do negócio– e da situação jurídica, econômica e financeira tanto do alienante, quanto do incorporador (cf. Caio Mário, p. 263).

Comentando esse dispositivo da alínea b do art. 32 da Lei 4.591/1964, Flauzilino Araújo dos Santos discrimina as certidões ali referidas em de (i) impostos federais, estaduais e municipais; (ii) protesto de títulos; (iii) ações cíveis; (iv) ações criminais; (v) ônus reais; (vi) complementares (as certidões ditas de objeto e pé –o.c., p. 220). Mezzari complementa essa lista, observando que o elenco previsto na lei de regência é deficiente, por não abarcar “situações específicas”, dando destas exemplo com a certidão relativa à “falta de recolhimento do FGTS por parte de empregadores inadimplentes” (o.c., p. 196). Também quanto às ações cíveis, parece devam elas compreender as causas trabalhistas (Mezzari, p. 196, e Flauzilino dos Santos, p. 221, nota 40).

A certidão de tributos visa a espelhar a realidade do status de um contribuinte perante a fazenda pública. Nos estados compostos –tal é o caso do Brasil–, essa fazenda pode ser federal, estadual, distrital e municipal. Assinale-se que, nos termos da Lei 4.591, as certidões tributárias exigíveis para o registro da incorporação são as relativas a impostos –não abrangendo, pois, outras categorias de tributos (taxas e contribuições de melhoria), nem o preço público. Desse modo, considerando o direito positivo atualmente em vigor entre nós, é exigível, para o registro, certidão relativa ao imposto municipal  sobre a propriedade predial e territorial urbana (Iptu; inc. I do art. 156 da vigente Constituição federal de 1988)  −não, porém, a de imposto de transmissão inter vivos de imóveis e de direitos reais sobre imóveis (Itbi; inc. II do mesmo art. 156 da Constituição); nem ainda a estadual (e distrital) sobre a transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos (Itcmd; inc. I do art. 155 do Código político brasileiro), porque não são tributos incidentes, directe, sobre o imóvel.  Quanto às certidões de impostos federais, observou Flauzilino dos Santos que elas não se exigem, relativamente aos imóveis urbanos, salvo em duas hipóteses, as (i) de aforamento e (ii) de o imóvel objeto ter sido rural nos cinco exercícios imediatamente anteriores, caso em que deve exigir-se apresente o incorporador certidão negativa de débitos de imóvel rural –ou sua correspondente positiva com efeito de negativa (o.c., p. 220), ou seja, certidão de regularidade fiscal. A primeira dessas modalidades de certificação –a negativa simpliciter de débitos fiscais– está prevista no art. 205 do Código tributário brasileiro e é representativa de quitação dos tributos a que corresponda. O segundo modo é o a da certidão de regularidade fiscal, sem efeito de quitação (scl. extinção; cf. art. 156 do referido Código); vale dizer, não se certifica a inexistência de débito tributário exigível em ato, mas o status de quem, pendendo dívidas tributárias, tenham-na, entretanto, com a exigibilidade suspensa, nos termos do que dispõe o art. 206 do referido Código tributário nacional: “Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa”; as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário preveem-se no art. 151 do Código: (i) moratória (cf. arts. 152 et sqq.); (ii) depósito do montante integral do débito; (iii) reclamações e recursos ”nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo”; (iv) medida liminar em mandado de segurança; (v) medida liminar ou tutela antecipada em demandas que não sejam de mandado de segurança; (vi) parcelamento da dívida tributária.

Bem se avista que, senão todas, algumas das causas suspensivas da exigibilidade dos tributos hospedam algum risco de, quando cessadas, afligirem de maneira muitas vezes grave as condições econômico-financeiras do incorporador ou do proprietário do imóvel onde se projeta realizar-se a construção. Já ficou dito que a certificação da existência de ônus fiscais não impede o registro da incorporação, desde que não se trate de empecilho à alienação (rectius: gravame de indisponibilidade). Tal o observou Caio Mário da Silva Pereira, o adquirente, “ao firmar o contrato de aquisição com a referência expressa ao débito fiscal (…) corre certamente o risco, porém, conscientemente” (p. 270), e essa possibilidade do registro visa a fomentar as incorporações, por evidentes os benefícios sociais que delas se esperam. Mas, para abrandar esses riscos, a lei incumbiu ao registrador, além do dever de, suposto admitida a inscrição, indicar em todos os documentos extraídos do registro da incorporação a existência e a extensão dos ônus fiscais (arts. 32, § 5º, e 37 da Lei 4.591), a tarefa anterior de avaliar se, a despeito desses ônus, o empreendimento merece prognose favorável (cf. Flauzilino dos Santos, p. 220; Mezzari, p. 197).

Página que bem realça a importância do registrador no tema da incorporação é a de Caio Mário, ao observar que o oficial de registro não atua, nessa matéria, qual “um mero espectador remunerado ou participante passivo do processo de registro da incorporação”. Muito diversamente, ao receber o título –a documentação– para esse registro, o oficial deve examinar-lhe a exatidão,  impor-lhe o saneamento das falhas, submetendo-lhe o pleito, quando o caso e em forma, ao processo de dúvida, e, sendo tamanha a relevância da função registral para o bom resultado das incorporações, a lei chega a definir-lhe a responsabilidade civil e criminal para a hipótese de “arquivamento contraveniente à lei” ou ainda para a de emitir “emitir certidão sem o arquivamento de todos os documentos exigidos” (§ 7º do art. 32 da Lei 4.591, de 1964; o.c.,, p. 269).

Entre, de um lado, a conduta meramente burocrática de recusa do registro da incorporação ante a só existência de ônus fiscal e, de outro lado, a da negligência no prognóstico do êxito do empreendimento – §2º do art. 32 da Lei 4.591), o ponto médio a esperar do bom registrador é a decisão ponderada que não desestimule os incorporadores, sem deixar, porém, de sopesar os riscos dos adquirentes e, além disso, observar, com rigor, o dever de constar dos documentos que a propósito expeça a existência e a extensão do débito de impostos.