Sobre o registro dos loteamentos urbanos e rurais

(da série Registros sobre Registros, n. 256) 

                    Des. Ricardo Dip

 

            926. O item 19 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, arrola os loteamentos −quer de imóveis urbanos, quer de imóveis rurais− entre os atos suscetíveis de registro predial em sentido estrito.

Tal se vê, pode ter-se como primeiro modo de divisão do loteamento o que considera o status urbano ou rural do imóvel loteado, assim entendido o terreno que se segmenta ou segrega de uma gleba, qual uma parte integrante se separa de seu todo corpóreo originário.

O conceito de loteamento urbano pende da noção que, do urbano, dita a Lei 6.766/1979 (de 19-12 − Lei de parcelamento do solo urbano), ao dizer, em seu art. 3º, que se trata de imóvel situado em “zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal”.

Assim, o loteamento urbano é uma das espécies de parcelamento −ou segregação− de imóveis, consistente, nos termos com que o define a mesma Lei 6.766, na “subdivisão de gleba [urbana] em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes” (§ 1º do art. 2º) conceito este que o discrimina da outra espécie de parcelamento, qual seja, o desmembramento, que a mesma Lei 6.766  diz ser “a subdivisão de gleba [urbana] em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na (sic) abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no (sic) prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes” (§ 2º do art. 1º). Desta maneira, ao passo em que o loteamento empolga a instituição de novas vias públicas de circulação −ou, quando menos, mudança acidental (“prolongamento, modificação ou ampliação”) da já existentes−, tem-se o desmembramento por ser um parcelamento que não cria, nem altera vias públicas de comunicação.

Ao lado dessas duas espécies indicadas na Lei 6.766, a doutrina e a jurisprudência judicial referem-se ainda ao desdobro que, em vez de ser parcelamento da gleba, é-o de lote (vale dizer, é um parcelamento sucessivos, a segregação de imóvel já antes segregado de maior terreno), modalidade, com todo o rigor, mais singela de desmembramento e que deste se discrimina para antes atender à menor extensão das exigências de sua regularidade jurídica do que à realidade material de sua segregação.

         927. O item 19 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015 não se refere expressamente ao desmembramento como título suscetível de registro em sentido estrito, senão que, na mesma lei, há indicação de que o desmembramento seja averbado (item 4º do inc. II do art. 167).

Todavia, nenhum motivo se avista para a distinção de classe dos atos registrais correspondentes ao loteamento e ao desmembramento, sobretudo quando se considera o objetivo das exigências do art. 18 da Lei 6.766, de 1979, em prol da conveniência urbanística e, em última análise, do bem comum da cidade. Em sentido contrário, dissera Wilson de Souza Campos Batalha (em texto anterior à vigência da Lei 6.766): “O simples desmembramento independe de requisitos especiais. Averba-se pura e simplesmente na matrícula do imóvel” (in Comentários à lei de registros públicos, vol. II, p. 698). Calha que, sobremodo a partir do vigor da Lei 6.766, de 1979, parece robustecida a orientação de que, para os fins da categoria ou modo de registrar-se o parcelamento, não caiba discriminar, de um lado, o loteamento, e, de outro lado, o desmembramento, ambos disciplinados em conjunto no referido art. 18 dessa Lei: “Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação, acompanhado dos seguintes documentos, etc.” Por isso, Valmir Pontes observou: “(…) vigente a mencionada Lei n. 6.766, outro é o sistema, uma vez que essa lei, no que concerne aos imóveis urbanos, sujeito o desmembramento às mesmas exigências que o loteamento, regulando ambos esses institutos de modo rigoroso e minucioso, com diferenciações quase imperceptíveis” (in Registro de imóveis, p. 46).

Isso não significa, é verdade, que todo e qualquer desmembramento e até o desdobro estejam subordinados à satisfação dos requisitos do aludido art. 18 da Lei de parcelamento do solo urbano, mas, sim, que as segregações, em todo seu gênero, propiciem o registro stricto sensu, com ou sem observância, segundo os casos, da norma do referido art. 18, que contempla um modo peculiar para o processo de registro (que, bem por isso, conhece-se pelo nome de “registro especial”). Nesse sentido, recruta-se da lição de Venicio Antonio de Paula Salles: “Não se pode exigir «sacrifício desmedido» do empreendedor, e nesse sentido é que se tem dispensado o «registro especial» para pequenos empreendimentos ou empreendimentos de pequeno impacto populacional, porque em tais hipóteses os custos burocráticos poderiam reverter em desfavor dos poucos adquirentes” (in VV.AA., Lei de registros públicos comentada, o.c., p.  678; com referência à dispensa do registro especial na hipótese de desdobro, cf., brevitatis causa, Walter Ceneviva, Manual de registro de imóveis, 1988, p. 155).

A jurisprudência administrativa de São Paulo adotou, a propósito, a orientação de submeter ao “prudente critério” do registrador −critério esse que deve escorar-se “em elementos de ordem objetiva, especialmente na quantidade de lotes parcelados”−, a avaliação casuística de exigir o registro especial em situações de desmembramento.  Parecer emitido pelo então Juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça paulista, o depois desembargador Luiz Antonio Ambra, justificou esse critério: “Não será qualquer fracionamento de imóvel que demandará as rigorosas, complexas e dispendiosas providências previstas no art. 18 da Lei 6.766. Casos haverá −v.g., o retalhamento de um único lote em dois ou três sublotes, de reduzidas dimensões− em que as exigências haverão, forçosamente, que ser dispensadas. A não ser assim se imporá, na verdade, injusto gravame ao proprietário, cominando-lhe providências desnecessárias apenas em nome da burocracia” (Proc. 141/85, 22-8-1985).

Nesse mesmo âmbito da jurisprudência registral paulista, é muito de destacar o largo parecer expedido nos autos do processo 62.129/83 −parecer esse datado de 2 de maio de 1983 e subscrito pelos magistrados Hélio Lobo Júnior, Hélo Quaglia Barbosa, José Roberto Bedran e Narciso Orlandi Neto. Acenando, de início, à experiência dos primeiros três anos de vigência da Lei 6.766, o parecer afirma estar “o registro do desmembramento equiparado, observadas certas circunstâncias, ao loteamento”, observando, adiante: “(…) se a atual Legislação não tivesse imposto o Registro especial para o desmembramento, fácil seria aos loteadores inescrupulosos escapar à sua incidência, pois, através de providências marginais e de expedientes artificiosos, como, por exemplo, o premeditado propiciamento de abertura de vias públicas, lograriam transmudar o que deveria consistir em verdadeiro loteamento com meros desmembramentos, simplesmente averbáveis (art. 167, II, 4, da Lei 6.015/73), com evidente afronta ao interesse público e indiscutível possibilidade de prejuízos aos eventuais adquirentes”. Nada obstante, prosseguem os pareceristas, não se recusa haja exceções; “o que não se pode é alargá-las, para alcançar situações não excepcionais, com o único objetivo de abrandar o rigor da Lei”.

Ressentia-se −e ainda ressente-se− a Lei 6.766 de uma previsão quantitativa a que se possa atrelar a decisão sobre a dispensa do registro especial do desmembramento do solo urbano. É até de cogitar não convenha prover essa lacuna em regra legal, tamanha a diversificação das circunstâncias dos casos. Todavia, o parecer do proc. 62.129/83 lançou-se a uma referência numérica que, sem embargo de meramente ilustrativa, terminou por, ao menos durante algum tempo, assentar um critério preferencial no balizamento da exigência do registro especial no desmembramento; observaram os pareceristas que alguns registradores atuavam “com rigorismo desmedido, exigindo o procedimento do Registro Especial para desmembramento de 3 lotes, e outros, excessivamente liberais, dispensando-o para parcelamentos de 10, 12 e, até mesmo, 15 lotes…”. E concluíam: “(…) desde que sempre atendida a parte urbanística, a ninguém, de bom senso e prudência média, seria lícito exigir que, para um desmembramento objetivando dois, três ou, até seis lotes, por exemplo, deva o interessado sujeitar-se ao pesado encargo do procedimento de registro previsto no art. 18”.