Artigo – Jornal do Brasil – Caso Gugu e o Direito de Família moderno, por Debora Ghelman

Artigo – Jornal do Brasil – Caso Gugu e o Direito de Família moderno, por Debora Ghelman

A morte do apresentador Gugu trouxe à tona três questões bastante polêmicas que vêm sendo discutidas no Direito de Família e Sucessões brasileiro. A existência de um contrato de geração de filhos pode afastar o reconhecimento de uma união estável? O companheiro pode ser excluído da herança através de um testamento? Podem existir uniões estáveis simultâneas?

Conforme noticiado pela mídia, Gugu elaborou em 2011 um testamento reconhecendo apenas os seus três filhos como os seus únicos herdeiros legítimos, excluindo a sua suposta companheira Rose Miriam de sua herança. Em relação à parte disponível de seu patrimônio, que corresponde a 50% de seus bens, o apresentador dividiu entre os seus filhos e sobrinhos, que são filhos de sua irmã Aparecida Liberato. Além disso, estabeleceu que sua mãe receberia de forma vitalícia a quantia de R$100.000,00 reais mensais, bem como o usufruto do imóvel que reside e que era de propriedade de Gugu. Por fim, nomeou a sua irmã Aparecida como inventariante e curadora dos bens herdados pelos filhos de Gugu, impedindo, de forma explícita, que Rose Miriam administre os bens de suas filhas menores.

A leitura do testamento diante dos familiares de Gugu causou um enorme mal-estar familiar. Rose Miriam sentiu-se injustiçada por ter sido excluída da herança e acionou a justiça brasileira para pleitear os seus direitos. Por sua vez, os familiares de Gugu alegam que Miriam não era companheira dele e eis que eles apresentam um contrato de geração de filhos celebrado entre Gugu e Rose Miriam no passado. Por fim, a mídia noticia que Gugu tinha um companheiro homoafetivo e que este acabou de ingressar na disputa pela herança.

O juiz de primeira instância tinha estabelecido uma pensão alimentícia de R$ 100 mil reais a Rose Miriam. Todavia, o desembargador cassou essa decisão ao argumento de que não existia união estável. Mas não se trata de uma decisão definitiva.

O Código Civil Brasileiro diz que para ser reconhecida a união estável deve haver uma relação entre duas pessoas (mesmo sexo ou sexos opostos), pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família. Pelas informações noticiadas pela mídia, Rose Miriam se relacionou com Gugu por 19 anos até a sua morte, além de ser a mãe biológica dos três filhos do casal. Ademais, o casal apareceu junto em diversas capas de revistas nacionais como se formassem uma família.

Ocorre que a justiça levou em consideração o contrato de geração de filhos realizado entre Gugu e Rose Miriam. E o que vem a ser esse contrato?

Apesar desse contrato não estar regulamentado no Brasil, sendo bastante comum nos Estados Unidos, muitos advogados defendem a sua validade jurídica, ao argumento de que as pessoas têm o direito e a liberdade de afastar o afeto das suas relações pessoais. Assim sendo, o afeto permanece somente em relação aos filhos, havendo uma relação parental (entre pais e filhos) e não uma relação conjugal (entre os pais). Uma vez sendo válido esse contrato não poderia a união estável ser reconhecida.

Como se vê, a discussão acerca da existência de uma união estável entre Rose Miriam e Gugu será bastante complexa. Para o público eles formavam uma família, mas para os íntimos eles possuíam apenas uma relação de amizade. Somente a justiça será capaz de decidir a questão.

Caso Rose Miriam seja reconhecida companheira de Gugu, surge uma outra questão. Afinal de contas, ela poderia ser excluída da herança através de testamento?

Em relação à condição do companheiro ser herdeiro, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a união estável é equiparável ao casamento, não podendo haver diferenciação em relação ao regime sucessório de ambos. Portanto, se o cônjuge é herdeiro necessário, conforme determina a lei, o companheiro não pode ser excluído da sucessão, sendo também herdeiro legítimo.

Infelizmente, o art. 1790 do Código Civil dizia que o companheiro tinha menos direitos sucessórios que o cônjuge. Por exemplo, ele herdaria metade do que os descendentes e os ascendentes do falecido herdam. E o art. 1829 nunca contemplou o companheiro como herdeiro necessário. Assim, a maioria dos doutrinadores considerava que o companheiro poderia ser excluído da herança através de um testamento.

Ocorre que em 2017, com o julgamento do Recurso Extraordinário 878.694/MG, o STF declarou inconstitucional o art. 1790, devendo ser aplicado ao companheiro as mesmas regras sucessórias aplicadas ao cônjuge, que são as seguintes: o patrimônio será dividido de forma igualitária com os descendentes (filhos, netos, bisnetos), na ausência dos descendentes o patrimônio será repartido com os ascendentes (pais, avós, bisavós) e na ausência de ascendentes e descendentes o cônjuge herda a totalidade dos bens do falecido.

Tendo em vista essa decisão do Supremo, a jurisprudência atual é no sentido de considerar o companheiro herdeiro necessário.

E quais bens de Gugu seriam herdados por Rose Miriam caso ela fosse reconhecida como companheira?

Supondo que Miriam seja considerada companheira e, portanto, herdeira de Gugu, diante da ausência de um contrato de convivência estabelecendo o regime de bens do casal, o regime que prevalecerá será o da comunhão parcial. Ou seja, Miriam tem direito à metade dos bens adquiridos por Gugu após o início da união estável, que são chamados de patrimônio comum do casal. Em relação aos bens particulares de Gugu, que são aqueles adquiridos antes do início do relacionamento, Miriam será considerada herdeira e terá que dividi-los com seus filhos e todos aqueles que foram contemplados no testamento por Gugu. Resumindo, Miriam terá direito a 50% dos bens comuns e mais um percentual dos bens particulares, que serão definidos pelo juiz do caso, o qual levará em consideração o que foi estipulado no testamento.

Por fim, o que acontece caso seja provado que Gugu possuía um companheiro homoafetivo?

Caso Rose Miriam não seja considerada companheira e esse companheiro consiga provar a sua união estável com Gugu, o mesmo será considerado herdeiro devendo partilhar os bens do espólio com os outros herdeiros.

Mas e se Rose também for considerada companheira? Pode ser reconhecida essa outra união estável? O Supremo Tribunal Federal ainda está julgando a possibilidade de haver uniões estáveis simultâneas, não tendo ainda decidido a questão. O julgamento foi interrompido. Por enquanto há juízes que reconhecem e outros que não reconhecem.

Como podemos ver, o caso do Gugu é um exemplo de como as relações familiares estão cada vez mais modernas e cabe ao Direito de Família se adequar a essa nova realidade através da jurisprudência dos Tribunais para, posteriormente, o Legislativo regulamentá-las.

Por enquanto, o caso Gugu reflete um planejamento sucessório que está gerando um imensurável conflito familiar. Muitas questões íntimas do falecido estão vindo à tona. Tomara que sirva de lição para todos nós. E que o judiciário consiga decidir a questão da forma menos dolorosa possível.

Debora Ghelman é advogada especializada em Direito Humanizado nas áreas de Família e Sucessões, atuando na mediação de conflitos familiares a partir da Teoria dos Jogos.

Fonte: Jornal do Brasil