Des. Ricardo Dip
O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 5)
Vimos, pois, que o conceito de moral pública é análogo, abrangendo (i) a moral dos atos no espaço público, (ii) a moral profissional dos funcionários públicos, (iii) a moral no âmbito da administração pública e (iv) a moral da comunidade.
Esta última ꟷqual seja, a moral da comunidadeꟷ não é, nullo modo, o mero retrato sociológico dos comportamentos e dos valores adotados, de fato, numa dada sociedade. Essa redução da moral aos fatos consumados corresponde à visão culturalista ou historicista que relativiza a ética; adotar esta opinião de que a moral se confunde com a vigência dos usos e costumes é, no fim e ao cabo, admitir por legítimo todo gênero de perversidades e crimes: como se faria, p.ex., para condenar moralmente regimes tirânicos, totalitários, tal o foi o nazismo e tais o foram e ainda são os outros regimes socialistas, e também como se faria, p.ex., para condenar moralmente o homicídio de inocentes, assim se dá com a prática do aborto direto, se a moral não passar de uma expressão equivalente ao da cultura dominante.
Ao revés desta moral sofística, as normas éticas, no entanto, devem ter uma relação causal com a ordem das coisas, com a natureza ontológica delas, ꟷou seja, devem ser consequentes da realidade das coisas, i.e., da verdadeꟷ, porque, de não ser assim, nossa inteligência e nossa vontade não seriam reguladas, mas seriam elas próprias, inteligência e vontade, a arbitrária medida das coisas e a despótica instituidora de normas morais variáveis segundo cada qual. É exatamente esta moral sofística a que sugeria Protágoras, ao sustentar ser “o homem a medida de todas as coisas”, é exatamente isto ainda o que se encontra na atual ditadura do relativismo.
A realidade das coisas leva à compreensão de uma ordem metafísica que é suscetível de apreender-se pelo entendimento. Daí resulta a ordenação racional para o bem.
Bernardino Montejano, pensador realista, é da realidade das coisas ꟷex natura rerumꟷ que, solidado com a doutrina clássica, extrai as normas da moral pública que, assim as indica, devam observar os homens em geral e, acrescentemos, alguns de maneira mais graduada, tais, entre eles, os notários. E, quanto a estes, não só como exigência de seu próprio aperfeiçoamento pessoal, mas também para servir a comunidade, ensinando-lhe e fomentando-lhe as boas condutas.
À partida, antes mesmo de enunciar as virtudes que Montejano alista para a observância pública, convém ainda uma vez tornar a referir a importância da magistratura notarial para a paz comunitária. Aristóteles, no livro VIII da Ética a Nicômaco, depois de dizer que a amizade é “o mais necessário para a vida” (Bkk. 1155 a), ensinou que, na vida política, à amizade parece assemelhar-se a concórdia, e sentenciou que, sendo os homens amigos, “nenhuma necessidade há de justiça, mas, ainda sendo justos, necessitam sim da amizade” (ou, na vida política, da concórdia). Tanto mais deve sublinhar-se a relevância da magistratura da concórdia ꟷtal é a do notariadoꟷ, quanto mais nos precatemos de que a amizade se reduz ao gênero da justiça ꟷreducitur ad genus iustititiæ (S.Tomás de Aquino, in Comentários…, n. 1.538), vale dizer, que a concórdia é uma espécie de justiça. Os notários, pois, sendo chamados, por seu próprio ofício, a promover a amizade política ꟷou seja, a concórdiaꟷ, são, ao fim, convocados a realizar, deste modo, uma espécie de justiça.
Para promover a concórdia, entretanto, sendo a amizade um hábito eletivo, deve o notário observar, pessoalmente, a moral pública e, no que for de sua parte, fazê-la observar na comunidade, porque não há verdadeira amizade política sem que ela tenha a virtude como causa ꟷvirtus est causa veræ amicitiæ(S.Tomás).
Disso deriva que Montejano apoie nas virtudes cardeais, sobretudo no hábito da justiça, as diferentes virtudes público-morais que, sendo elas anexas dos hábitos cardeais, ensina ele devam observar-se na vida da comunidade, se “aspiramos a uma rica convivência”. E assim divide Montejano essas virtudes, dispondo-as segundo sejam partes potenciais ꟷconteúdos virtuaisꟷ da justiça (virtudes de veneração, virtudes de honestidade e virtudes de civilidade) e da fortaleza (virtude da magnanimidade), a que acrescenta a virtude cardeal da temperança.
O primeiro grupo comporta subdivisão, assim indicada por Montejano: (i) virtudes de veneração: religião, piedade e observância; (ii) virtudes de honestidade: gratidão, vindicta e veracidade; (iii) virtudes de civilidade: afabilidade e liberalidade. O hábito de piedade, por sua vez, ainda se divide em virtude de piedade familiar e virtude de piedade patriótica.
A essas virtudes, Bernardino Montejano agrega a exemplaridade, o espírito de serviço e a formação cívica.
Algum exame pontual desses vários hábitos será o objeto de nossa atenção na sequência destes pequenos artigos.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares