O dia 14 de novembro de 2025 marcou o fim de um ciclo importante na Justiça paulista. Depois de 46 anos de trabalho, o desembargador Ricardo Henry Marques Dip se aposentou da magistratura. A data encerra uma trajetória que influenciou não só o Tribunal de Justiça de São Paulo, mas também todo o campo do Direito Notarial e Registral no país.
Dip nasceu em São Paulo, em 1950, e sempre teve uma formação muito ligada ao estudo e à comunicação. Primeiro se formou em Ciências da Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero; logo depois, concluiu Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Essa combinação, técnica jurídica e clareza na forma de explicar, acompanhou toda a sua carreira.
Ele entrou na magistratura em 1979, como juiz substituto em Jundiaí. Passou por diferentes comarcas do interior e pela capital, conhecendo de perto a realidade da Justiça paulista. Em 1991, foi promovido a juiz substituto em 2º Grau; em 1994, ingressou no Tribunal de Alçada Criminal; e, em janeiro de 2005, chegou ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Ao longo dos anos, ocupou funções que ajudaram a moldar a estrutura da Justiça paulista: presidiu a Seção de Direito Público, integrou o Órgão Especial e participou da comissão que selecionou novos juízes em um dos concursos mais concorridos do estado. Também atuou junto à Corregedoria Geral da Justiça e ao CNJ.
Paralelamente, construiu uma vida acadêmica muito ativa. Com mestrado em Função Social do Direito, foi professor e coordenador de cursos de pós-graduação, além de convidado para atividades no exterior. Escreveu artigos, integrou comitês científicos e contribuiu para publicações jurídicas no Brasil e fora dele.
No campo notarial e registral, sua influência é ainda mais perceptível. Seus estudos, debates e posicionamentos ajudaram a consolidar a visão de que a atividade extrajudicial é importante para a cidadania e para a organização da vida civil. Sua atuação serviu de referência para muitos profissionais e inspirou a criação da Academia Paranaense de Direito Notarial e Registral, da qual se tornou presidente vitalício.
O legado teórico de Ricardo Dip também se evidencia na forma como aplicava, na prática, elementos da tradição jurídica clássica. Reconhecido pela erudição e pela dedicação ao estudo do Direito Natural, Dip é apontado como o principal discípulo do professor José Pedro Galvão de Sousa, notabilizando-se como o maior nome atual do Direito Natural tradicional no Brasil. Seus votos, sempre técnicos e bem fundamentados, incorporavam reflexões sobre natura rerum e sobre a gnome, virtudes descritas por Santo Tomás de Aquino e presentes na arquitetura de seu pensamento jurídico.
Sua produção bibliográfica é extensa. Entre suas obras mais conhecidas estão ABC do Direito Natural, Propedêutica Jurídica, Os direitos humanos e o Direito Natural, Imagem do Homem, Segurança Jurídica e Crise do Mundo Pós-Moderno, Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas, Da Ética Geral à Ética Profissional dos Registradores Prediais, Tradição, Revolução e Pós-Modernidade e Prudência Notarial, entre outras contribuições que marcaram o estudo do extrajudicial no país.
A importância de sua trajetória acadêmica é reforçada pela recente obra coletiva Jurisprudência e Tradição, lançada pela editora Lepanto como homenagem ao desembargador. O livro reúne artigos de juristas e estudiosos que analisam aspectos da carreira e do pensamento de Ricardo Dip, destacando sua contribuição ao Direito Natural, à hermenêutica tradicional e ao desenvolvimento das atividades notariais e registrais brasileiras.
Ao anunciar sua aposentadoria, o desembargador Ricardo Henry Marques Dip falou abertamente sobre o novo momento que se inicia após quase 50 anos dedicados à magistratura. Com honestidade e serenidade, explicou que pretende seguir lendo, estudando e ensinando, ainda que já não possa exercer a função jurisdicional.
Dip destacou que não poderá mais judicare e que também não deseja postulare, já que não exercerá a advocacia. Da mesma forma, afirmou que não pretende ministrare (dar aulas de forma formal) nem cavere (atuar como notário). Segundo ele, sua atuação futura será restrita ao respondere: “Estarei pronto apenas para responder consultas”, afirmou. Em tom mais pessoal, disse que pretende dedicar mais tempo a si mesmo, viajar e aproveitar a família.
Ao mesmo tempo, não escondeu a emoção ao deixar a instituição onde construiu quase cinco décadas de vida profissional e relações afetivas. “Não se pode deixar uma atividade depois de 47 anos de amor pelo Tribunal de Justiça sem uma certa tristeza”, disse. Para Dip, o que mais pesa é a despedida do convívio diário com colegas e servidores.
“Perder o convívio com tantos amigos, com a própria casa e estrutura material do Tribunal de Justiça de São Paulo é algo que me dói. Os servidores muito amados que se convertem em amigos, meus servidores, assessores a quem dedico minha consideração e gratidão”, completou.
A saída de Dip da magistratura encerra um capítulo, mas não a sua participação na vida jurídica do país. Seu nome segue presente nas salas de aula, nos debates sobre o papel do Direito e no desenvolvimento do extrajudicial.
O legado que construiu ao longo desses 46 anos continua vivo e segue influenciando novas gerações de magistrados, notários, registradores e estudiosos do Direito.
Em homenagem ao desembargador Ricardo Henry Marques Dip e à sua trajetória de 46 anos dedicados à magistratura, a Anoreg/PR realizou uma entrevista exclusiva com perguntas que revisitam momentos marcantes de sua carreira. Uma conversa direta, esclarecedora e alinhada ao legado que ele construiu.
Confira na íntegra.
AnoregPR - Desembargador, Vossa Excelência iniciou sua carreira na magistratura em 1979. Quais lembranças guarda dos primeiros anos como juiz e que valores o acompanharam desde então?
Ricardo Henry Marques Dip - Lembro-me bem que, depois de pedir formalmente − de joelhos no chão − a custódia de minha carreira a Nossa Senhora do Rosário, firmei-me na intenção de sempre buscar, em cada caso, atribuir o justo concreto. Ou seja, empenhar-me em ser sempre justo, em solidar-me na virtude da justiça. Mas uma coisa logo aprendi: querer ser justo não é o mesmo que saber ser justo, e foi por isto que tratei de educar-me na virtude da prudência, cujos resultados não serei eu a avaliar se foram bons ou maus.
Anoreg/PR - Ao longo de 46 anos, o senhor presenciou grandes transformações no Poder Judiciário. Quais considera as mais marcantes?
Ricardo Henry Marques Dip - Houve algumas benignas transformações do Judiciário brasileiro ao largo destes 46 anos. Mas, a bem da verdade, houve também detrimentos. Tomemos um só exemplo, o da técnica. Beneficiou-se o Judiciário de recursos tecnológicos propícios a mais rápido desfecho dos processos; a celeridade também interessa à realização da res iusta. No entanto, em contrapartida, as mesmas tecnologia e atenção à rapidez processual levaram a uma frequente estereotipagem e à intensificação do déficit, contra o qual já advertira CASTÁN TOBEÑAS, de diagnose dos fatos levados aos processos. O problema não era, nem nunca foi a técnica, mas, isto sim, a tecnocracia. A meta de celeridade pôs a perder a ponderação; assim o avisara precocemente CHATEAUBRIAND, o uniformismo técnico acarretou a despersonalização.
Anoreg/PR - Quais princípios nortearam a atuação do senhor ao longo desses 46 anos de serviço público?
Ricardo Henry Marques Dip - Sempre, disto nunca decaí, busquei ser justo em minhas decisões. A tanto, de par com a vontade permanente e constante de dar a cada um o seu direito −isso define o hábito moral da justiça−, tratei de educar-me na virtude da prudência, para chegar a juízos retos, quer dizer, a juízos conformes à verdade, conformes à realidade das coisas. Apartei-me, rigorosamente, das tendências nominalistas, idealistas, positivistas, etc. Procurei assegurar-me da preservação do sensus iuridicus naturalis, reconhecendo o quanto me foi possível os preceitos da lei natural. O direito é a coisa justa, não a mecânica aplicação de regras.
Anoreg/PR - Que conselho deixaria para os jovens magistrados e para os profissionais que ingressam na carreira extrajudicial?
Ricardo Henry Marques Dip - Meu conselho é de que tratem de educar-se na virtude da prudência jurídica, sobretudo em seus hábitos anexos, o da sínese e o da gnome, valendo-se não só da experiência pessoal, mas também da docilidade, aprendendo de outros mais experienciados ou mesmo até mais sábios. No campo da docilidade está indicada a leitura de obras de filosofia moral e, não menos, de teologia moral, com ensinamentos relevantes para a aquisição gradual da prudência.
